Revista laboratório Unisanta 2023
História para cantar e contar
Nas vielas e nas esquinas da periferia, uma melodia ganha vida, ecoando esperança e resistência
A música na periferia é uma expressão autêntica da cultura local, emerge das experiências cotidianas dos moradores. Usa uma linguagem universal que ultrapassa barreiras sociais e culturais, conectando-se profundamente com a identidade das comunidades.
Nesse contexto, transcende suas notas e acordes transformando-se em um poderoso instrumento, capaz de unir, inspirar e dar voz às comunidades marginalizadas nos batuques dos tambores, nas rimas improvisadas e nas melodias contagiantes.
Nesses espaços, os talentos surgem de maneira espontânea, muitas vezes como uma válvula de escape para a dura realidade. A música torna-se um veículo poderoso para expressar sentimentos, protestar contra injustiças e criar laços de solidariedade. Além disso, a música na periferia vai além do entretenimento. Ela exerce um papel transformador na vida dos jovens, oferecendo uma alternativa criativa e positiva em meio a adversidades.
Projetos comunitários, como escolas de música e grupos de dança, proporcionam oportunidades de desenvolvimento artístico e pessoal, estimulando o senso de pertencimento e autoestima. Por meio da música, muitos jovens encontram uma nova perspectiva de vida, descobrindo seus talentos e construindo um futuro melhor.
Das palafitas para Itália
A música na periferia é um tesouro cultural que merece ser valorizado e difundido. Ela revela as vozes autênticas que ecoam pelas vielas, transmitindo histórias de superação, resistência e amor.
É o caso de Gabriel Prado, de 26 anos, que hoje dá aula de percussão na Itália, mas que teve sua história com a música iniciada na Zona Noroeste. “Nasci e fui criado ali, morei com minha avó no Rádio Clube e depois nas palafitas da Vila Gilda”.
O músico tinha 10 anos quando conheceu o projeto que mudou sua vida: o Arte no Dique. Ele já gostava de música, tocava em escola de samba, mas não tinha educação musical necessária para entender com seriedade o que é ser um músico, o que é estudar, e o Arte no Dique teve esse papel.
“A música me deu tudo. As maiores felicidades que tive na vida foi com a música, que é meu amor, meu chão. Tenho que agradecer todo dia por poder fazer música, poder pensar, ouvir o canto dos passarinhos e saber decifrar ritmo e melodia. O Arte no Dique foi a entrada para tudo isso. Pude viajar pelo Brasil e Europa e estou há 8 anos na Itália, atualmente com minha família e meu filho, que nasceu em janeiro deste ano”.
Na Itália, Prado não dá aulas fixas, porém, faz workshop falando dos ritmos brasileiros, de uma forma didática que só tem nos países que são afrodescendentes. O workshop se chama “Tambor di Favela”.
A música me deu tudo. As maiores felicidades que tive na vida foi com a música
Gabriel Prado
Da perifa para França
Também egresso do Arte no Dique, Jorge Henrique, de 25 anos, mora hoje em Marselha, na França, onde participa de projetos sociais em comunidades, muitas delas envolvendo refugiados. Se mora hoje em uma cidade banhada pelo Mediterrâneo é porque a música facilitou o seu caminho.
Filho de sambista, ele aprendeu a identificar os sons do reco-reco, pandeiro e tamborim ainda muito cedo; na verdade, desde de que se entende por gente. Suas melhores lembranças da infância são do pai desfilando no carnaval. "Sou quem sou hoje por causa da música", reconhece.
Jorge não esquece da importância do professor Cabeça na sua formação musical. É até hoje uma de suas maiores referências e um nome essencial em sua jornada. Foi quem o ensinou a ser músico, o que, segundo ele, é diferente de apenas tocar um instrumento. “Hoje eu e meus colegas que estão em outros países temos conseguido viver da nossa arte. O apoio desses mestres e de institutos, como o Arte no Dique, é extremamente importante".
Comparada com o Brasil, a realidade das periferias francesas é bem diferente. “Aqui, a maioria dos vulneráveis são os refugiados, por isso meu trabalho é voltado para eles. A França tem muita violência, periferias, não na mesma dimensão do Brasil, mas também tem. Hoje eu reproduzo aquilo que fizeram por mim”, reforça Jorge.
Hoje eu e meus colegas que estão em outros países temos conseguido viver da nossa arte.
Jorge Henrique
Três perguntas para José Virgílio, presidente do Arte no Dique
Qual a projeção que os jovens e adolescentes esperam alcançar com a música?
Aqueles que se aplicarem, estudarem e mostrarem dom poderão se tornar músicos profissionais.
Como a música auxilia esses jovens na sua formação como cidadão, ela realmente tem esse efeito de transformação?
Sim, a música e a arte têm a capacidade de transformar e abrir a mente das pessoas. O Arte no Dique tem como plataforma a formação do cidadão e hoje temos dois jovens que são músicos profissionais e tocam e dão aula de percussão na Europa, um na Itália e outro na França, formados no Arte no Dique.
Quais gêneros musicais abordados no projeto?
O Arte no Dique começou com a percussão, nosso carro-chefe. Começamos com o samba-reggae, ritmo criado pelo Maestro Neguinho do Samba, no Olodum. Hoje temos um ritmo percussivo próprio do Coletivo Querô, nossa banda percussiva. Temos também um festival “O Som das Palafitas”, no qual grandes cantores, cantoras e músicos brasileiros se apresentam na nossa sede para nossos alunos.