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Mãos desentrelaçadas

O que significou o fechamento de uma das poucas alternativas

culturais do Rádio Clube para a comunidade?

As noites de terça, quinta e domingo do Rádio Clube, na Zona Noroeste de Santos, já não são mais as mesmas. Na larga e extensa calçada da avenida Doutor Frederico de Figueiredo Neiva, 24, o repicar dos tamborins foi substituído por uma monotonia que não se via antes de fevereiro deste ano. Onde anteriormente havia uma folia dançante, hoje há apenas a sede de uma associação, trancada por grades, com uma longa faixa na parede com os dizeres: “Cursos Gratuitos”, seguido por uma lista de estilos de dança e arte.

 

Logo abaixo dessa faixa, Thiago Tadeu do Santos, mais conhecido como Thiaguinho, ao olhar para a fachada da sede, relembra dos bons momentos, quando a batucada acompanhava, num ritmo compassado, seu potente grito de guerra naquela rotina semanal. “Toda semana nossos ensaios carnavalescos eram aqui e hoje é a primeira vez que venho após o fechamento”, desabafa.

Thiago se refere ao encerramento da ONG e Academia de Samba Mãos Entrelaçadas, na qual foi intérprete por nove anos. A instituição nasceu em 2011 para promover diversas atividades socioculturais, como cursos de dança, artes visuais, informática e música, destinadas à comunidade carente da região. Em 2015, como parte do desejo dos fundadores, o casal Eliane Rocha e Marcos Gouveia, o projeto criou a primeira escola de samba do bairro, numa tentativa de envolver ainda mais a comunidade com essa arte tão cultural que é o Carnaval.

Bastava o som do apito do mestre de bateria ecoar pela avenida principal, que o fluxo de alunos e professores no imóvel de dois andares se intensificava. Os mais de 40 jovens do projeto que integravam à bateria solidificaram a sonhada coletividade e sensação de pertencimento pelos moradores do bairro. Famílias inteiras passaram a frequentar o lugar, que virou um ponto de encontro, aprendizado e confraternização. Pena que o sonho tenha durado tão pouco. Mãos Entrelaçadas está em processo de fechamento desde o fim do carnaval deste ano.

"A Mãos fechou?"

Os motivos por trás da decisão de descontinuar as atividades são especulados pelos moradores. Há quem diga que faltava entrosamento entre o casal de fundadores da ONG e a comunidade. Outros acreditam que o rebaixamento da agremiação do grupo especial para o grupo de acesso no carnaval de 2023 tenha acelerado o fechamento. Seja qual for o motivo, é fato que o encerramento inesperado pôs fim ao rufar dos tambores, calou a voz potente de Thiago, deixando do lado de fora potenciais talentos da dança e da música.

Os termos “palafita” e “favela”, geralmente atribuídos a lugares com habitações precárias, sujeira e desorganização, são realidade entre os que vivem nas proximidades da sede da “Mãos”.  A lista vai de lixo jogado no Rio dos Bugres a fios de eletricidade baixos, encanamento exposto, estreitos caminhos feitos com tábuas de madeira, entre outros exemplos do completo descaso do serviço público com o local.

Esse cenário enfatiza a necessidade de atividades culturais na região, onde agora se ouve pelas estreitas vias a seguinte pergunta: “A Mãos fechou?”. A dúvida no ar não era em relação à escola, que já tivera anunciado o fechamento, mas em relação à ONG, que também encerrou as atividades, sem avisar a ninguém.

Alguns moradores, inclusive, tinham suas suspeitas sobre a falta de comunicação por parte da ONG. Uns diziam nunca ter visto os criadores da ONG indo à comunidade e chamando o pessoal para participar. Outros falavam que as pessoas iam porque conheciam alguém de dentro e queriam participar. 

Entrelaçadas
por uma vida melhor

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O que eu mais quero é melhorar de vida"

Nem todo mundo se deu conta de que os portões fechados significavam o fim definitivo de todo o projeto. Em meio às casas e palafitas, a notícia chegara ao pequeno salão de manicure da proprietária Alessandra da Silva Chavier, que se mostra surpresa com a notícia do fechamento da ONG. Alessandra é grata ao trabalho da entidade, já que um de seus filhos não só fazia parte da bateria da escola de samba, “Batucada de Arcanjos”, como também participou de um curso de informática.

“Eu sempre o incentivei a ocupar o tempo com coisas produtivas e, com o fim disso tudo, esse buraco na cultura do bairro aumenta bastante. Infelizmente, aqui as alternativas para as pessoas se divertirem é o ‘bailão’ ou as ‘biqueiras’, que são cheias de coisas ruins para a gente e principalmente para os nossos filhos”, explica Alessandra.

Ela culpa o desinteresse dos moradores pelo fim de uma ideia que poderia ainda trazer muitos frutos ao bairro. “A maioria conhecia a ONG, mas poucos realmente estavam interessados em aprender algo útil. O que eu mais quero é melhorar de vida e é uma pena ver que estou na minoria aqui que pensa assim”.  

Alessandra Chavier

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[...]Precisamos ensinar essa vontade de ‘crescer’ na vida"

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Avançando pelo piso de tábua suspenso sobre o mangue, uma mulher limpa a casa ao som de “Time of my life”, música icônica do clássico do cinema Dirty Dancing – Ritmo Quente. A música também embala a coreografia de Soraya Aparecida, moradora há 26 anos na comunidade e ex-rainha de bateria, com passagem por várias escolas de samba do carnaval santista.      

A moradora evidencia outro grande problema que os “órfãos” da Mãos Entrelaçadas estão sentindo. “A melhor coisa da escola era justamente o fato dela ficar perto de nós. Agora que tudo acabou fica difícil participarmos de outra agremiação por causa da distância; o preço da passagem acaba ficando caro pra muita gente”.

Menos oferta de educação, lazer e entretenimento significam para Soraya mais riscos para as novas gerações. “Nós, que já temos 30, 45 anos, precisamos ensinar essa vontade de ‘crescer’ na vida. Tudo que aprendi em cursos passei para os meus filhos, porque hoje em dia não dá para ficar na rua devido ao envolvimento com coisas erradas”.

O fantasma do serviço público aparecia num desabafo agora ainda mais profundo da moradora. “Antes da ‘Mãos’ existia um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), depois ele fechou. Aí abriu a ONG e agora fechou, o que que vai ser agora? Infelizmente essas coisas nunca são por amor, é tudo ‘politicagem’”, critica.

Soraya Aparecida

Uma luz no
fim das palafitas

Em meio a essa realidade, entretanto, brilhava como uma luz no fim do túnel um muro colorido com arte em grafite com os dizeres “Tio Valmir – Cineminha da Cliançada”, chamando a atenção até mesmo de Thiago, acostumado às mazelas do Jardim Rádio Clube.  “Um cinema? Aqui?”, pergunta o interprete da escola de samba que não existe mais.

O mistério foi solucionado de forma rápida. Poucos minutos depois surge Valmir Jesus Cruz, líder comunitário, responsável pelo “cineminha” e que fala com orgulho de seu projeto: “Trabalho há muito tempo com crianças. Inicialmente era só uma ‘salinha’ com uma TV, mas hoje em dia já temos um projetor e até fazemos pipoca para elas. As mães adoram porque sabem que as crianças estão seguras e fazendo algo divertido”, afirma, com entusiasmo.

“Por isso a importância do cinema, das festinhas e das datas especiais. É relembrar como deveria ser a vida de uma criança, voltar um pouco com aquela ‘velha infância’ que tinha quando eu era mais novo”.

Mais que infância e cultura, Valmir também tem orgulho pelas pessoas que ajudou e que irão continuar o seu legado. “Não ganho muito, mas a minha felicidade é imensa e digo que as coisas boas têm que continuar”.

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O indício da tal felicidade começa a surgir com Edilson da Silva Santana, presidente da Associação Comunitária Comporta, time de futebol com mais de 33 anos no Rádio Clube, que em 2019 inaugurou um espaço para a associação. Desde então, a organização presta ações de solidariedade e lazer, tentando resolver os problemas dos moradores.

Em certo contraste à “Mãos Entrelaçadas”, a Comporta, com sede localizada bem na entrada da comunidade, sempre se esforça para escutar a todos. “Buscamos sempre ajudar na medida do possível, distribuindo cestas básicas e resolvendo outros problemas envolvendo o comércio e a criminalidade. Também promovemos eventos como Festa Junina, Dia das Crianças, aniversários, tudo para proporcionar momentos de diversão e de união em torno de algo bom”, conta Edilson.

Sem baquetas nas mãos, mas com bola no pé, o esporte se torna o ponto cultural para a vida de um jovem das palafitas. “Nosso trabalho se estende para o time de futebol porque, além de dar esporte para a molecada, a gente quer que eles respeitem os pais e se empenhem na escola. Todo dia é um esforço que fazemos não para nós, mas por eles, que depois irão colher os benefícios de um futuro melhor”, disse o presidente, feliz com seu trabalho.

As águas de março anunciam o fim do verão no Jardim Rádio Clube. Com o fim do Carnaval, fecham-se as “Mãos”. Mas não é o fim do caminho. A batucada, outrora recorrente nas noites de terça, quinta e domingo, deu espaço a outro som, também estridente: o grito da torcida do time da Comporta, vibrando dentro e fora de campo.

O som do apito agora indica o início de um novo jogo, uma nova história que se escreve, abrindo a porteira para os novos talentos do Rádio Clube.

Everton Ribeiro (à esquerda), Valmir Cruz (centro), Edilson Santana (à direita)

MÃOS - Um sonho que jamais vai terminar

MÃOS - Um sonho que jamais vai terminar

Autores

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Sequência 05.00_14_40_10.Quadro015.jpg

João Olmos
Repórter

Pietro Falbuon
Repórter

César H. Corrêa
Editor

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