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“Sem o SUS viveríamos uma verdadeira tragédia nessa pandemia”, diz ex-ministro da Saúde

Atualizado: 30 de abr. de 2020

O médico Arthur Chioro é um crítico contundente da forma como o governo federal vem conduzindo a pandemia do coronavírus, especialmente o atraso na compra de testes e de equipamentos de proteção para os trabalhadores da saúde e a postura pessoal do presidente Jair Bolsonaro diante da crise.


Com larga experiência como gestor público de saúde, Chioro possui doutorado pela Unifesp, foi secretário de saúde dos municípios de São Vicente e São Bernardo do Campo e, por três mandatos, presidiu o Cosems, conselho que reúne todos os secretários de saúde paulistas. Ocupou também cargo de ministro da Saúde entre 2014 e 2015. Atualmente, é professor da Unifesp e da Unisanta.


Chioro concedeu entrevista coletiva por meio do aplicativo Zoom poucos dias antes da exoneração de Henrique Mandetta e de sua substituição por Nelson Teich no Ministério da Saúde. Com a mediação do professor Helder Marques, as perguntas foram formuladas por alunos do primeiro ano de Jornalismo da Unisanta: Júlia Soares, Ágata Vasconcelos, Bianca Ramos, Samuel Cordeiro, Juliana Guimarães, Eduarda Antunes Silva, Ronaldo Júnior, Gyovanna Soares, Sarah Lima, Nicoly Plácida, Laura Lamouche, João Pedro Silva, Guilherme Torelli, Guilherme Esron, Kai Prawdzik, Henrique Godinho, Giuliana Tiberi, Maria Vitória Ferreira de Souza e Gabrielly Marques.



Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O surgimento de novos vírus e a ocorrência de outras pandemias serão o grande desafio da saúde pública mundial nas próximas décadas?


As estimativas dos cientistas é que existam centenas de milhares de vírus que ainda não são conhecidos, alguns capazes de trazer doenças, outros que podem conviver simbioticamente com os seres humanos sem nos levar ao adoecimento.


O vírus Ebola, que surgiu na África, é muito mais grave que o coronavírus, e ele só não se transformou em pandemia e ficou circunscrito a uma epidemia em alguns países da África porque ele matava ou deixava as pessoas tão debilitadas que elas não conseguiam viajar.

No caso do covid-19, a maior parte é de casos leves ou assintomáticos. Mas por ser altamente infecciosa, a doença teve rápida transmissão a partir dos pacientes que viajaram para outros lugares. A gripe espanhola, por sua vez, demorou alguns anos para varrer os continentes, porque ela era levada pelos negociantes de navio, por trem, ocasionando gradativamente um volume de mortos impressionante.


O desenvolvimento predatório,desencadeia o que chamamos de zoonoses. São as doenças transmitidas aos homens pelos animais. Com o mundo cada vez mais globalizado, com a atividade econômica interferindo de forma desmedida, quase irracional na natureza, não duvidaria de que teremos um número maior de eventos globais como o desse de agora.


Na maior parte dos países a decisão foi a de promover o isolamento social para impedir a propagação do coronavírus. O Ministério da Saúde e outros especialistas em saúde pública consideram que o isolamento é a melhor maneira para evitar o aumento dos casos. Entretanto, sob a a legação de prejuízos irreparáveis à economia, alguns empresários e o próprio presidente Jair Bolsonaro defendem a flexibilização dessa medida, mantendo-se apenas o isolamento dos grupos de risco. Qual a sua posição a respeito?


Eu diria que praticamente todos os médicos sanitaristas, todos os profissionais de saúde pública compartilham a mesma opinião, de que neste momento é fundamental o isolamento horizontal, ou seja, o isolamento da maior parte possível da população.

Essa posição é contrária ao que o presidente da República vem dizendo, sendo a única autoridade em âmbito mundial a se colocar contra as diretrizes e orientações da Organização Mundial de Saúde. E não se trata de uma disputa ideológica, porque ele vai contra o que recomenda seu ministro da Saúde. O Bolsonaro conseguiu inventar um negócio que se chama auto-oposição, isso não existe em nenhum lugar do mundo, um presidente que faz oposição ao seu próprio governo. É surreal!


A Itália e a Espanha foram dois países na Europa que, no inicio dos casos, fizeram exatamente essa recomendação para que apenas idosos e pessoas portadoras de doenças crônicas ficassem resguardadas em suas casas. Esses países explodiram no número de casos. E todos vimos na TV o depoimento do prefeito de Milão se arrependendo, pedindo desculpas por ter feito exatamente o movimento que o Bolsonaro tentou fazer, com a campanha “Milão não pode parar”. Um tsunami tomou conta do sistema de saúde da Itália, que tem um grande número de leitos de UTI por habitante e um excelente sistema de saúde, mas não deu conta do número de casos graves que precisavam ir para a UTI, que precisavam de respirador e que morreram por falta de assistência.


A Inglaterra, que também possui um excelente sistema de saúde, no começo da doença disse que deixaria tudo aberto para ter o efeito rebanho, que é quando as pessoas têm a doença mais branda e se imunizam. Mas ela rapidamente percebeu que isso seria uma tragédia. Outro país que não se preocupou inicialmente com o isolamento foi os EUA, cujo presidente Trump alegava ser somente uma gripezinha, e hoje tem o maior número de casos no mundo. Tudo isso me dá a segurança para dizer que nós precisamos manter o isolamento no Brasil e muito provavelmente precisaremos ficar assim por algum tempo.


O senhor acha que pelo fato de o Brasil contar com o Sistema Único de Saúde, que proporciona atendimento médico a todos os brasileiros, será importante no enfrentamento do covid-19? E isso pode fazer com que a população passe a ter uma imagem melhor sobre o SUS, que é tão criticado?

Sem o SUS viveríamos uma verdadeira tragédia. Os países da América Latina e outros países do mundo que não têm sistema universal de saúde agora vão pagar um preço altíssimo por não contarem com uma estrutura de proteção. Isso apesar de toda a destruição que o SUS vem sofrendo, especialmente nos últimos 3 anos, porque a tal emenda do teto retirou da saúde 22 bilhões e meio de reais.


O SUS vem sendo destruído ano a ano particularmente a partir do golpe que destituiu a presidenta Dilma, quando romperam a normalidade democrática e aplicaram a Lei do Teto. Uma das esperanças que nós temos é que a população brasileira, de todas as classes sociais, reconheça agora a importância que o SUS tem.. A vida não pode ter preço, a vida não pode ser calibrada se você pode ou não pagar um plano de saúde.


Existe toda uma estrutura de vigilância epidemiológica, de vigilância sanitária, de controle de doenças, de pesquisa, de produção de vacinas, que faz parte do SUS, ações que são muito exitosas, mas que ficam quase ocultas. O SUS apanha diariamente e propositalmente para abrir espaço para o mercado privado. E é nessas horas que a sociedade percebe isso, mas o SUS podia ser muito mais potente, muito mais qualificado, muito mais apto para garantir atendimento a todos os brasileiros.



Baseado em sua formação na área da saúde e na sua experiência como ministro, o senhor se arriscaria a dar uma previsão de volta à normalidade das atividades no Brasil?


Não. Acho que nós precisamos ainda aguardar como irá se comportar a doença nos próximos dias. O ministro da Saúde deixou de tomar as medidas mais importantes que precisavam ser tomadas. Por exemplo, não colocou recursos no orçamento da Fundação Oswaldo Cruz, que é um laboratório público que teria a capacidade de produzir os testes do coronavírus. Também não comprou no mercado nacional e não fez a compra no mercado internacional. Então, nesse momento, a gente não tem teste para nada, só os casos graves que são internados e vão para a UTI é que estão sendo testados, e isso é um crime. Os próprios trabalhadores da saúde, que começam a sentir os sintomas, são afastados porque não conseguem ser testados e isso tem causado a diminuição da força de trabalho nos hospitais. Sem testes suficientes, eu teria muita dúvida para dizer quando nós vamos poder voltar à normalidade.


E aí vou acrescentar um segundo elemento: nosso primeiro caso confirmado foi no dia 25 de fevereiro, quase dois meses depois do primeiro caso surgir na China. Só que os casos estavam concentrados no hemisfério norte, onde está terminando o inverno. E nós agora vamos chegar à fase mais crítica, que é o inverno. É nesse período em que as pessoas já ficam mais confinadas que as síndromes gripais têm uma prevalência maior. Por isso, tenho a convicção de que viveremos outras ondas de casos, especialmente nas regiões Sul e Sudeste do país.


Sabendo que o Brasil tem muitas comunidades carentes que não têm água ou rede de esgoto, além de muitas famílias viverem em cômodos apertados, como o Estado pode intervir para evitar que haja uma explosão de casos nesses núcleos mais pobres?


Na Europa eles não tiveram que enfrentar essa situação que é típica do Brasil e de toda a América Latina, que são os cortiços, as favelas, além do grande número de pessoas que vivem em situação de rua. Na cidade de São Paulo, que possui mais de 30 mil pessoas vivendo em situação de rua, as mensagens são voltadas para as famílias que moram em casas estruturadas, com água e espaço para fazer adequadamente a higiene e o isolamento. Tenho visto poucas prefeituras e algumas iniciativas da sociedade civil que se destinam a essa população de maior vulnerabilidade. É preciso construir um conjunto de estratégias, como levar caminhões-pipa para as comunidades; instalar caixas d´água; distribuir kits de higiene; garantir que as pessoas de rua tenham banheiros químicos para lavar as mãos e escovar os dentes; e requisitar clubes, hotéis, albergues, ginásios esportivos para abrigar as famílias que não têm condições de fazer o isolamento social.


A demora do governo em assegurar auxílio financeiro para as pessoas mais necessitadas é quase uma estratégia de fazer com que essas pessoas boicotem o isolamento porque como elas vão ficar em casa se não tiverem dinheiro para comprar comida, para poder se manter? E chamo atenção para outro segmento que é extremamente vulnerável, que são os mais de 700 mil brasileiros presos, que vivem em superlotação. Assim, a tragédia anunciada está dada.


O prefeito da cidade de Limeira gravou um vídeo e pediu que as pessoas infectadas não fossem estigmatizadas. Afirmou ainda que todos nós seremos infectados e alguns perderão a vida. Gostaria que o sr. comentasse sobre esse possível preconceito contra os infectados e se realmente todos nós seremos infectados, com ou sem isolamento social. 


Apesar de toda a rede de colaboração no mundo inteiro não há perspectiva de uma vacina antes de dois anos; é o tempo que demora o desenvolvimento, produção, testagem e depois a imunização das pessoas.

Outra maneira é as pessoas pegarem a doença, desenvolverem anticorpos, provavelmente esse vírus - a não ser que ele sofra uma mutação -, não reinfecte a segunda vez, e quem já teve a doença poderia trabalhar.


Agora quando uma autoridade, como o Bolsonaro, diz que foi atleta e vai ter um resfriadinho, é uma irresponsabilidade, um crime. Não posso chegar e dizer: muita gente vai morrer, então deixa morrer. É inaceitável do ponto de vista humano, tem que ser muito insensível. Acho que a autoridade tem que dar para as pessoas as perspectivas de como sobreviver a um momento tão difícil. Alguns vão morrer, sim, não negligenciem a importância da pandemia, mas o Estado tomará todas as providências para estar ao seu Alado. Dizer apenas que muitos vão morrer e pronto, isso é darwinismo social, terraplanismo ideológico, algo inaceitável.



Marcelo Camargo/Agência Brasil

A China foi o primeiro país a ter casos do novo vírus e o primeiro a conseguir controlar a doença. Hoje o principal problema dos chineses é evitar que haja uma segunda onda de contaminação. Numa eventual segunda fase de combate ao covid-19 no Brasil, quais medidas deveriam ser tomadas para que a doença não volte a se agravar e exigir o retorno à quarentena?


Acho que a partir da experiência da China, que é um país continental como o Brasil e bastante populoso, vimos que os casos foram concentrados em uma província com aproximadamente 60 milhões de habitantes. Com as medidas de isolamento, foi possível conter a epidemia na província de Wuhan, e isso gerou muito aprendizado.


Entre as medidas que podemos tomar numa segunda, terceira ou quarta onda, a principal é testar, testar, testar, porque à medida em que eu sei quem está infectado, a gente pode rastrear com quem a pessoa teve contato, testando, isolando e promovendo o bloqueio epidemiológico.

Outra providência é o reforço das medidas de higiene. É provável que nos acostumemos durante um certo tempo a sair com uma máscara e termos hábitos de higiene muito diferenciados até termos uma vacina.


É importante preparar o SUS, perceber a importância do Programa Mais Médicos, que o Mandetta e o Bolsonaro desmontaram por uma questão ideológica, e que agora está fazendo uma falta danada. Estamos com a atenção básica destruída, com equipes incompletas para atender os casos que não precisam de internação.


Precisamos das equipes de saúde da família, ampliar a quantidade de leitos de UTI, adquirir respiradores, e contar com equipamentos de proteção, como máscaras, viseiras, capotes, luvas, botas, que hoje estão faltando e são fundamentais para proteger os trabalhadores da saúde.

Teremos de apostar na reconversão da cadeia produtiva. É possível deixar preparadas fábricas para que, em casos de emergência, consigam rapidamente reverter, num esforço de guerra, a produção para atender a demanda por máscaras, respiradores e outros materiais. É hora de dar direção política, chamar os fabricantes e a Fiesp à responsabilidade para construirmos uma resposta sanitária.


Recentemente, o ministro da Saúde disse que uma compra de materiais de saúde encomendados da China não foram atendidos porque os Estados Unidos ganharam a preferência na compra. A mesma queixa foi feita pelo governo francês, porque os Estados Unidos pagaram três vezes mais por um lote de máscaras que seria destinado à França. Já se fala em "guerra das máscaras" e o mesmo problema também está ocorrendo com ventiladores e outros materiais de proteção. O que o sr. acha dessa disputa e como ela pode prejudicar países mais pobres como o Brasil?


É lamentável! O mundo, que vive em uma dimensão global, está perdendo a humanidade.Mas há gestos positivos que não podemos deixar de lado: a China, em uma estratégia de política externa muito ousada, está demonstrando apoio a diversos países em todo o mundo. Alguns pacientes graves da Itália estão sendo transferidos para a Alemanha, que vem cedendo equipamentos e pessoal para outros países.


Em contrapartida, os Estados Unidos, que têm como presidente uma figura de direita, absolutamente se mostram avessos a qualquer colaboração que não seja para atender os interesses dos próprios americanos. Os EUA colocaram três trilhões de dólares para aquecer a sua economia e não destinaram nem mesmo uma quantia ínfima para ajudar alguns países mais pobres, tal como o Equador e o Haiti.


Por outro lado, não hesitaram em interceptar um avião que transportava equipamentos e insumos comprados pelo governo brasileiro quando o avião parou naquele país para fazer escala. Isso só mostra o quão grande está essa guerra comercial, essa guerra de interesses, e que os Estados Unidos não são parceiros do Brasil porcaria nenhuma, como se procura vender. A única alternativa é o governo brasileiro enviar o avião da FAB diretamente à China para buscar os equipamentos para que possam chegar ao Brasil com segurança.


Recentemente, o filho do presidente e o ministro de Relações Exteriores do Brasil criaram um incidente diplomático com a China por besteira, picuinha, e este é o momento em que a China está ajudando outros países e responde à altura pela provocação. Há um outro aspecto nessa questão, que é a incapacidade da ONU e da OMS de conseguir uma harmonização mundial das relações externas e a solidariedade entre os países.


A Baixada Santista poderia de alguma forma estar mais suscetível ao vírus por ser uma região portuária?


Pelo fato de estar conurbada com São Paulo, que concentra o maior número de casos, e como ela recebe estrangeiros pelo porto e tem um polo petroquímico com uma constante visita de profissionais do exterior, em um primeiro momento a nossa região ficou bastante vulnerável à pandemia de covid-19, mas agora, como já temos a transmissão comunitária esse aspecto talvez importe menos.


O que me preocupa é a grande concentração de idosos. Nós temos um percentual de idosos que está muito acima da média do estado de São Paulo e do país, o que nos traz uma preocupação adicional.

Alguns médicos chineses consideram que o sangue de pessoas curadas pode ajudar no tratamento de pessoas infectadas. O sr. acredita que essa retirada de anticorpos do plasma de pessoas que se curaram do covid 19 pode ser eficiente?  


Em tese, sim. Não é uma técnica nova, ela é conhecida desde a década de 1960, tendo sido usada para outras doenças. O problema é a dificuldade de fazer o isolamento e o processamento. Isso também serve para o uso de alguns medicamentos que são apregoados como uma forma de salvar todas as pessoas, me refiro à cloroquina, remédio que trata da malária, lúpus e doenças reumáticas.


Mas, por enquanto, não temos nenhuma evidência científica segura para avaliar se uma modalidade terapêutica é melhor do que outra, seja a transfusão sanguínea ou de componentes do sangue ou a utilização de outros medicamentos alardeados como salvadores. Até o momento estão sendo usados como soluções desesperadoras, quando não há mais nada a fazer.


Sabemos que já há queixas sobre a falta de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde. Também não temos testes rápidos suficientes para garantir que esses profissionais não sejam infectados. Nessa situação, o que pode ser feito para evitar o risco de perdermos enfermeiros e médicos na linha de frente do tratamento da covid-19? 


É inaceitável o atraso na aquisição e produção de equipamentos. Não estamos falando nada que seja impossível, nada que custe muito dinheiro ou seja tecnologicamente difícil. É inaceitável que os profissionais de saúde estejam sendo colocados em risco, assim como suas famílias. Eu acho que foi um descompromisso, um despreparo.


O ministro diz que se guia pela ciência, pelo planejamento, pela gestão, mas eu o conheço bem, ele foi o deputado que mais fez oposição ao SUS, que mais boicotou, ele não acredita em nada do que ele vem falando. Embora ele tenha sido catapultado a herói nacional, ele irresponsavelmente não tomou as medidas necessárias para proteger os trabalhadores. Em muitos hospitais está baixando o número de profissionais, porque não compraram nem testes, nem equipamentos de proteção suficientes.


Sou médico há 32 anos, trabalhei em UTI durante 5 anos. Ainda trabalho em serviços de urgência até hoje, dou plantão toda segunda à noite, mas não atuo mais em uma UTI. Para trabalhar em uma unidade de terapia intensiva, os médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem se qualificam para lidar com equipamentos que a gente não usa no cotidiano.


Se eu tiver que entubar um paciente hoje e colocar no respirador, sou capaz de explodir o pulmão dele, porque não tenho habilidade técnica para mexer nesses equipamentos. Não é da noite para o dia que você repõe uma mão de obra qualificada que atende casos críticos. É uma situação muito preocupante.


Na sua opinião, a imprensa vem informando corretamente ou está exagerando nas informações sobre o covid-19 e causando pânico entre a população, como afirmou recentemente o presidente Jair Bolsonaro?


A imprensa tem cumprido um papel excepcional do ponto de vista de produção de informação, mas também de análise da gravidade do problema que estamos vivendo. Se nós não tivéssemos uma imprensa livre, a capacidade de ter jornalistas com compromisso ético e social, nós estaríamos sucumbindo ao terraplanismo sanitário, às trevas.


Quem acompanha o jornalismo econômico sabe que muitos jornalistas dessa área são defensores da pauta liberal, dos ajustes econômicos, do corte de gastos em políticas públicas, mas rapidamente eles puderam perceber a importância de uma guinada na condução da política econômica num momento de crise. E foram abandonando progressivamente o discurso liberal, mais centrado na Escola de Chicago e retomando teses keynesianas que indicam a importância da participação do Estado na reativação da economia, da garantia do mínimo necessário para a sobrevivência da sociedade e na produção de políticas públicas. Até voltei a assistir o Jornal Nacional por causa disso.


O sr. acredita que, após a pandemia do coronavírus, o uso da inteligência artificial, a robótica, a telemedicina e outras tecnologias passarão a ser mais utilizadas para evitar a contaminação dos profissionais de saúde?


A inteligência artificial já está sendo largamente utilizada. Quem entra hoje nos nossos hospitais, inclusive no Brasil, vai se assustar com o grau de incorporação tecnológica que já existe no campo da saúde. Hoje em muitos hospitais, toda assistência farmacêutica, toda disponibilização de doses de medicamentos, o médico prescreve no sistema, aperta o enter e de um armário robotizado sai toda dose unitária e já informa o almoxarifado central da necessidade de reposição. Então, isso é fundamental porque evita desperdício, evita erro de manipulação. Nas técnicas cirúrgicas, nas videolaparoscopias, na medicina nuclear, há uma altíssima incorporação tecnológica. É importante lembrar que nós fizemos a decodificação do genoma do coronavírus em 24 horas no Brasil.


O interessante é que, na saúde, a incorporação não é substitutiva, é cumulativa. Hoje temos ultrassom, tomografia computadorizada, ressonância magnética, pet scan e outros exames fantásticos, mas continuamos usando o raio X. A inteligência artificial é incapaz de prescindir da presença humana, porque há uma dimensão do cuidado que está no campo da subjetividade, da interpretação das relações humanas.


Grávidas podem passar o vírus para o bebê na barriga?

E no caso de mãe infectada, ela deve evitar a amamentação?  


Em princípio não há essa transmissão vertical. Porém, se a mãe estiver com sintomas e amamentando, pode infectar o filho pelo contato respiratório, por estar a uma pequena distância da criança. É fundamental para o bebê que ele receba os anticorpos por via da placenta e depois pelo aleitamento materno. Quando a mãe está infectada, temos os Bancos de Leite Humano para as mães que não conseguem amamentar seus filhos.


Uma pessoa infectada pelo coronavírus, mesmo que não esteja no grupo de risco, mas que apresente sintomas graves, pode ter complicações futuras em relação a fazer atividades físicas ter alguma sequela?

Não se sabe ainda, os casos foram descritos na China a partir de janeiro. A covid pode levar a uma pneumonia viral, com grande destruição do tecido pulmonar. Muitos conseguem se recuperar plenamente, outros poderão ter comprometimento severo, médio ou leve a médio ou longo prazo, dependendo dos resultados da fisioterapia.

A cloroquina tem sido apontada como um medicamento que traz bons resultados no tratamento dos infectados pelos coronavírus, mas ainda há muita polêmica sobre a sua eficácia. Qual sua posição a respeito?


Os especialistas estão estudando isso, mas não há evidência científica para indicar esse medicamento. O que há são grupos de médicos que usam esse remédio como uma das possibilidades de tratamento em casos críticos. Na França, ocorreram mortes pelo uso desse medicamento devido ao prejuízo que ele pode causar na função hepática. Por outro lado, muitos que precisam desse tratamento para o lúpus, malária e doenças reumáticas não estão conseguindo comprar,


Com a falta de máscaras descartáveis, veio a proposta de fazer as máscaras em casa. Gostaria de saber se a máscara feita em casa tem a mesma eficácia que as descartáveis?

Sim, as máscaras feitas em casa ou as descartáveis servem como barreira para evitar o lançamento de secreções pelo espirro, tosse ou mesmo pela fala, assim como também impede que recebamos gotículas de outras pessoas. Só que as pessoas não podem se sentir totalmente protegidas com a máscara. Não se pode deixar de adotar o isolamento, deve-se sempre lavar as mãos e não afrouxar nas medidas de proteção.


Qual o tamanho do impacto que o coronavírus terá na saúde pública brasileira?


Toda crise tem dois significados ao mesmo tempo. A crise significa perigo, mas também pode significar oportunidade. Nós podemos continuar sendo um país que não tem um Sistema Único de Saúde pra todos com qualidade, um país que não protege seus idosos, nós podemos ser um país que não pense em políticas públicas para reduzir a desigualdade, que na hora da crise econômica não chama o andar de cima e não taxa as grandes fortunas pra sustentar a conta da crise.


Ou nós podemos ser um país e um mundo que constroem uma nova ordem social que estabeleçam relações mais civilizadas, que mediem melhor a relação entre necessidade e de consumo, que pensem uma dinâmica de distribuição de renda, de educação, de segurança em âmbito internacional. Talvez a gente tenha um mundo melhor ou talvez a gente saia do mundo mais egoísta, mais mesquinho, eu não sei.


Se não for descoberta uma vacina até o inverno, o que poderá acontecer com a propagação do coronavírus nesse período, considerando que é também a época de incidência de outras doenças respiratórias?


Como disse anteriormente, é esperada uma nova onda, em particular nas regiões mais frias do País. Mesmo que a gente consiga controlar, ou mesmo que tenha uma onda explosiva, não me surpreenderia com uma segunda ou terceira onda no inverno. Há estudos que mostram que a cada grau que sobe a temperatura diminui a incidência do número de caso. A perspectiva do inverno potencializa a transmissão, mas estamos frente a um fenômeno pouco conhecido e precisamos avaliar semana a semana.

Segundo levantamento do Sindicato de Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (Sindsep), ao menos 190 funcionários do sistema público de saúde foram afastados, em razão de suspeita de coronavírus. 


Na rede privada, foram 104 no Hospital Sírio-Libanês e 348 no Hospital Albert Einstein. Considerando a possibilidade de faltar profissionais de saúde, eles devem receber prioridade no tratamento?

Primeiramente, defendo o tratamento para todas as pessoas, independente de classe social. Uma das coisas que precisaremos enfrentar neste momento fazer é a unificação dos leitos de UTI públicos e privados sob um comando único central de regulação. Não se pode definir quem vai morrer ou quem vai viver se tem ou não plano de saúde. Chegou a hora de todos sermos tratados como iguais.


Claro que o profissional de saúde que está se expondo, enfrentando um risco maior, precisa ter tratamento, precisa ser protegido, ter direito ao afastamento e ao tratamento. Mas, acima de tudo, o que está faltando é formação adequada e a disponibilidade de equipamentos para que não se infectem. No começo da epidemia, quando o manejo ainda é não é muito claro é plausível que ocorram infecções. Entretanto, uma vez estabelecidas as rotinas, os protocolos e com os equipamentos disponíveis, os trabalhadores jamais deveriam se infectar.



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