Estação de espera
Após décadas de descaso da Rhodia em um dos maiores casos de contaminação por materiais biopersistentes da história, quase não houve mudanças para os moradores da área continental de São Vicente
Por Bárbara Silva, Giulia Arduin e Larissa Barbosa
Rua Gustavo Cordeiro, bairro Gleba II, em São Vicente. Meados dos anos 90. Era ali que Maria Eurides Pereira observava as crianças, de 5 a 11 anos, jogando bola no terreno. Correm com os pés descalços, em busca dos chinelos fincados no chão para marcar a trave do gol. Na época, o bairro tinha poucas construções, então campos vazios e terrenos baldios eram comuns nos arredores.
Em contraste com o cenário bucólico, uma placa proibindo a entrada de pessoas não autorizadas demarca um desses terrenos. Ninguém sabia que aquele solo estava contaminado. Camadas e camadas terra adentro, massas disformes de resíduos tóxicos permeavam cada grão da terra.
Havia pouco tempo que dona Eurides, hoje com 63 anos, tinha se mudado para o bairro Gleba II. Naquele tempo, o chamado "caso Rhodia" já era conhecido, discutido com frequência entre os moradores. Não era difícil encontrar pela área continental do município pessoas que desenvolveram câncer - ainda que nem sempre fosse possível atestar com laudos a relação da doença com a contaminação por produtos tóxicos -, ou ouvir relatos de trabalhadores contaminados.
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Dona Eurides os conheceu em reuniões na associação de moradores, onde eles foram convidados para falar. Ela ouvia seus relatos com tristeza: “Eles diziam que trabalhavam com hexaclorobenzeno e pentaclorofenol, e com isso eles ficavam com um odor tão forte, que a mulher não conseguia sentir o cheiro deles. Isso me marcou muito.”
Segundo relatos do dossiê elaborado pela Associação de Combate aos Poluentes (ACPO), entre 1976 e 1978 foram verificadas erupções cutâneas dolorosas e fétidas (cloracne) pelo corpo daqueles que tinham contato com os produtos tóxicos. O relato traz ainda a história de Francisco Alves Moura, operador de granulação, que tinha contato direto com o pentaclorofenato de sódio, e passou por 48 intervenções cirúrgicas para retirar todos os caroços do corpo. Até mesmo sua família foi contaminada ao manipular suas vestes de trabalho.
Esses sintomas apontavam problemas maiores, como doenças hepáticas e do sistema nervoso. Foi o caso de Moura, que ainda teve comprometimento dos pulmões. Em matéria do jornal A Tribuna de 5 de junho de 2003, o ex-funcionário também alegou ter sofrido corrosão química na laringe e no pulmão esquerdo por conta da manipulação do pentaclorofenato de sódio - conhecido popularmente como “pó da China”.
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O problema persiste, embora permaneça escondido para muitos, devido à influência de poderosos. Tudo aconteceu há mais de 40 anos, mas até hoje muitas famílias aguardam reparação.
A Rhodia se comprometeu a fazer a limpeza e vigilância dos chamados “lixões”, em cumprimento a um acordo com a Justiça. Moradores de imóveis cuja estrutura era contaminada por produtos tóxicos receberam ressarcimento da empresa, que comprou os terrenos e demoliu as casas no bairro Parque das Bandeiras. Mas a comunidade da área continental de São Vicente, local mais afetado pelos despejos, como um todo, nunca recebeu indenização pelos danos causados. Os moradores que foram contaminados ainda convivem com sequelas.
“A situação de abastecimento de água na região é delicada. O risco de desabastecimento existe”
CLOROGIL, RHODIA E OS ANOS DE CHUMBO
A complexidade do caso justifica os muitos anos de investigações realizadas por organizações, cientistas e associações comunitárias. Ainda assim, há escassez de informações sobre os habitantes contaminados, os lixões e os detalhes das atividades da empresa, que coincidem com o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Naquele tempo, os militares apostaram na abertura econômica para facilitar a entrada de multinacionais no país. Cubatão era na época o maior polo industrial da América Latina e foi declarada área de segurança nacional.
Em 1966, a empresa Clorogil iniciou suas atividades em Cubatão, na Rodovia Piaçaguera, quilômetro 4. Ela produzia os pesticidas organoclorados pentaclorofenol e pentaclorofenato de sódio. A fábrica era denominada “Penta”. Sua ligação com a Rhodia era ainda, de certa forma, de “primos distantes” - a Clorogil tinha como acionista a francesa Progil, que pertencia ao então grupo estatal Rhône-Poulenc, representado no Brasil pela Rhodia S/A.
Já em 1976, a Rhodia assumiu o controle da Clorogil e, por conta da falta de espaço para despejo dos dejetos tóxicos nas fábricas, passou a descartá-los em áreas clandestinas. Tais dejetos foram encontrados no Vale dos Pilões em Cubatão, na área continental de São Vicente e em Itanhaém, ou seja: cerca de 80 km do litoral paulista foram percorridos para que fosse feito o descarte indevido desses produtos.
As primeiras denúncias de problemas de saúde de funcionários começaram a surgir em 1978. Segundo o dossiê da ACPO, eles trabalhavam na unidade de produção do pó da China. Ainda segundo o documento, a Cetesb fez o primeiro registro dos descartes, mas não tomou medidas de punição. O documento, “Resíduos sólidos industriais na bacia do rio Cubatão – VI", publicado naquele mesmo ano, localizava os resíduos despejados pela Rhodia e mostrava a dimensão deles.
No ano seguinte, surgiram as primeiras reportagens a respeito. De acordo com o dossiê, dois funcionários morreram com quadros de intoxicação aguda na unidade do pó da China. A empresa foi fechada ainda em 1978, por pressão dos funcionários, que conseguiram algumas garantias vitalícias.
Jornal Cidade de Santos, 1985
Os resíduos tóxicos enrijeciam em contato com o ar, formando massas disformes, descartadas a céu aberto.
ÁREA CONTINENTAL DE SÃO VICENTE
O estudo da médica sanitarista Agnes Soares da Silva, “Contaminação Ambiental e Exposição Ocupacional e Urbana ao Hexaclorobenzeno na Baixada Santista”, publicado em 1998, mostra que foram encontrados três lixões na região até o início de 1990 (não contando outros locais de descarte): um no bairro do Quarentenário e outros dois entre os quilômetros 67 e 69 da Rodovia Padre Manoel da Nóbrega, na mata entre os bairros do Rio Branco e Parque Continental. Em 1993, mais dois: um na altura do quilômetro 65 da Padre Manoel da Nóbrega e outro no Quarentenário. Ainda de acordo com o estudo, os lixões teriam sido implantados entre 1976 e 1984.
Bárbara Silva
Terreno contaminado pela Rhodia localizado entre o bairro da Gleba II e o Rio Branco, na rodovia Padre Manoel da Nóbrega.
A pesquisa da médica indica que a composição no resíduo dos lixões nas cidades em geral era de 70% a 80% de hexaclorobenzeno e 10% a 15% de hexaclorobutadieno. Outras substâncias, em menor quantidade, eram o tetraclorobenzeno, pentaclorobenzeno, clorofórmio e percloroetileno.
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E o que é mais preocupante: ao analisar essas informações, o estudo da médica sanitarista aponta os riscos a que a população da área continental vicentina estava exposta simplesmente por morar ali.
O bairro Jardim Rio Branco se expunha aos resíduos do Quarentenário e do depósito do quilômetro 67 devido à ação dos ventos. A população do Quarentenário tinha fácil acesso à área contaminada; enquanto os moradores da Gleba II, também eram afetados pelas linhas de drenagem superficiais que vinham do terreno contaminado do quilômetro 69.
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Jornal Cidade de Santos, 1985
Já os moradores do Parque das Bandeiras e Samaritá tinham contato direto com os lixões, e análises encontraram índices de hexaclorobenzeno nos peixes, siris e moluscos capturados pelos pescadores locais. “A carapaça do caranguejo não endurecia, os peixes ficavam cegos”, relata Francisco de Sousa Pereira, de 61 anos. Aposentado, ele trabalhou em várias indústrias de Cubatão e chegou na área continental por volta de 1987.
“Através da pesquisa da doutora Agnes e de outros especialistas, a gente soube que o hexaclorobenzeno, o pentaclorofenol e todas essas substâncias que contaminam a terra também contaminam o lençol freático. Contaminam o capim, o grilo que come ele, o sapo que come o grilo, a cobra que come o sapo, o gavião que come a cobra, e ele vai parar no tecido gorduroso do ser humano”, enfatiza Pereira. “Por isso é muito difícil você eliminar esses produtos porque na cadeia alimentar ele vai parar no ser humano.”
Mas a água contaminada também fez um caminho direto até chegar ao consumo humano, desta vez com o pentaclorofenol. A matéria do jornal “Cidade de Santos” de 26 de setembro de 1985 registrou que a água consumida pela população do Parque das Bandeiras e do Quarentenário, que vinha dos poços artesianos, tinha um
"é muito difícil você eliminar esses produtos, porque na cadeia alimentar ele vai parar no ser humano"
Francisco de Sousa Pereira
"cheiro de inseticida, às vezes cândida, e formando uma espécie de nata azulada quando depositada algum tempo num recipiente".
Além disso, de acordo com a mesma matéria, moradores confirmaram que vinham sentindo tonturas, dores de cabeça frequentes e problemas na pele havia pelo menos seis meses. "Alguns deixaram de consumir a água, usando-a apenas para limpeza. Para beber e cozinhar, atravessam a rodovia Padre Manoel da Nóbrega e pedem para usar a água para moradores e comerciantes do outro lado."
O conjunto habitacional Humaitá e o bairro Parque Continental, que foram construídos sobre área de mangue, podem ter sido contaminados devido aos resíduos provenientes do lixão do Quarentenário. Outra matéria do jornal “Cidade de Santos'', de 29 de agosto de 1985, afirma que os resíduos deste lixão deslizavam até o rio Mariana, que passa atrás do conjunto habitacional.
“E aí começaram a surgir os problemas”, conta Pereira, uma das lideranças comunitárias que atuaram em defesa da população local. “O pessoal daqui foi descobrindo as áreas contaminadas na Mata da Velha (as matas entre os bairros Parque das Bandeiras, Rio Branco e Parque Continental), na marginal. A gente começou a se manifestar e todos que foram atingidos entraram com ação na Justiça”.
Ainda na área continental está a Estação de Espera. Localizada no quilômetro 67 da rodovia Padre Manoel da Nóbrega, o local serve como depósito para os produtos químicos removidos dos lixões. Segundo o dossiê da ACPO , o terreno tinha capacidade para receber 12 mil toneladas de dejetos. Entretanto, cálculos da própria Rhodia e da Cetesb mostravam que 60 mil toneladas foram escavadas e levadas para incineração, enquanto 33 mil toneladas restaram na Estação de Espera. Isso teria ocorrido entre o período de 1988 e 1993.
Segundo representante da entidade, a Estação de Espera, instalada em 1987, tinha previsão de funcionamento de apenas cinco anos. No entanto, o local funciona até hoje, com o solo contaminado aguardando um destino adequado. Não há, também, um plano definitivo de recuperação para eliminar as 8 mil toneladas de resíduos tóxicos depositados na fábrica de Cubatão.
“Tentaram retirar um pouco para a Bahia, mas houve uma denúncia e a Bahia não aceitou mais, e em Sarzedo, Minas Gerais”, explica seu Francisco Pereira. “E continua tudo aí. Porque não existe uma solução segura nem para transportar nem para incinerar. Esses produtos, ao serem aquecidos na incineração, liberam dioxina. Dependendo do grau da temperatura, as dioxinas que estão paradas evaporam e vão para o espaço. E vão retornar através das chuvas ácidas, das próprias chuvas da natureza, e vão cair na Mata Atlântica, em toda essa região.”
Jornal Cidade de Santos, 1985
EFEITOS NA SAÚDE
Outro levantamento desenvolvido em convênio com a Organização Pan-Americana de Saúde, ECO e o Serviço de Saúde de São Vicente, em 1994, descobriu contaminação até no leite materno. Participaram da pesquisa 23 mulheres da área continental e outras 17 mulheres que não haviam sido expostas aos produtos. Foram coletadas 40 amostras de leite materno e soro sanguíneo.
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O hexaclorobenzeno foi detectado em 20 amostras de leite materno de mulheres da área continental, em níveis bem mais altos que as do outro grupo, cuja substância foi encontrada em seis mulheres. Foram detectados também outros organoclorados, como hexaclorociclohexano (HCH), presente em 90% das amostras de leite materno analisadas e o diclorodifeniltricloroetano (DDT), que apareceu em 100% das amostras de leite materno e 42,5% das de soro sanguíneo.
O PÓ DA CHINA
O temível pó da China é resistente ao tempo. “Quando eles são lançados na natureza, as bactérias que degradam isso não reconhecem esses elementos,
porque eles não fazem parte da natureza, são estranhos ali. Tanto isso é verdade que os resíduos da Rhodia estão lá em São Vicente até hoje, porque a
bactéria não chega perto”, explica o químico e engenheiro
especialista em controle de poluição, Élio Lopes.
O pó da China foi banido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2006 por sua toxicidade para animais e humanos, e também pela persistência desse ingrediente ativo no meio ambiente. Seus flocos opacos e claros podem contaminar diretamente a pele, por inalação ou ingestão. Os sintomas do pó da China no organismo variam desde conjuntivite, acne, queimaduras, febre, até perda de peso, convulsões e, em casos mais graves, a morte.
A IMPRENSA
O jornalista José Roberto Fidalgo, que cobriu a cidade de São Vicente pelo jornal A Tribuna nos anos 1980, recorda da primeira vez que visitou o lixão do km 67,5. Até então, se sabia apenas do lixão dentro da unidade da Rhodia. “Quando a gente foi fazer a matéria, não sabia do que se tratava”, relata.
Fidalgo não costumava ir à região continental da cidade, apenas caso acontecesse algo muito diferente. O acesso era difícil, e não era direto. Ou se ia para lá pela Ponte Pênsil ou por Praia Grande, porque a ponte A Tribuna, popularmente conhecida como Ponte dos Barreiros, foi inaugurada somente em 1994.
Aquele seria o dia do “algo diferente”. Fidalgo, juntamente com o repórter Helder Marques, do jornal “Cidade de Santos”, foi até o bairro Parque das Bandeiras a pedido da subprefeitura. Segundo o funcionário que os recebeu, havia um material estranho sendo depositado logo ali perto por uma empresa de Cubatão, fato que já vinha recebendo denúncias de moradores.
“Ó, tá vendo isso aqui?”, apontou para uma espécie de placa brilhante com camadas de tons coloridos. Ele pegava a placa nas mãos, sem proteção. “Isso é o que o pessoal da Rhodia joga. Eles vêm aqui de madrugada, de manhã bem cedo ou aos finais de semana. A gente não sabe o que é direito, mas sabe que é um produto químico."
Fidalgo e Marques continuaram averiguando o material, sem conseguir identificá-lo. Mais tarde, voltaram para suas respectivas redações para começar a apuração.
Fidalgo conta que uma das descobertas mais graves foi que os lixões a céu aberto sofriam interferência de ventos, chuva, e que já haviam penetrado no lençol freático da região e contaminado os rios. “Quando o conjunto Humaitá começou a ser habitado, se questionou novamente a questão da água, pois ali ela era coletada dos mananciais da região, e eles teoricamente estariam contaminados”, relata.
“A gente ainda não tinha noção do tamanho daquilo, da gravidade do caso. Só com a identificação dos produtos químicos e a descoberta de novos lixões é que percebemos a extensão do problema”, diz o jornalista.
Jornal Cidade de Santos, 1985
Jornalistas perceberam a gravidade do problema à medida que foram sendo descobertos novos lixões e identificadas as substâncias.
ENTIDADES E MORADORES
Antigos moradores da área continental como Maria Eurides, Francisco de Sousa e Luiz José da Silva conversam sobre o caso Rhodia e a narrativa é a mesma. Eles viram outros moradores morrerem por causa da situação ambiental. Para eles, a Rhodia foi negligente com os próprios trabalhadores, despejou toneladas de lixo químico em áreas habitadas e condenou a população e o meio ambiente a viver anos sob aquele lixão, com pouca ou nenhuma resposta.
Quem viveu aqueles tempos, persiste em não deixar a história morrer, sempre na espera de que essa luta possa acabar com o estado de abandono em que se encontram. As novas gerações sequer sabem o que há naquela mata
da rua Um do Parque das Bandeiras, ou nos rios onde nadam nos dias de calor, ou ainda nos terrenos usados como campo de futebol por crianças que correm atrás da bola de chinelos ou simplesmente descalços.
Bárbara Silva
Francisco de Sousa é uma das lideranças
comunitárias que atua em defesa da população contra a Rhodia.
Mais de 40 anos depois das primeiras denúncias, os representantes da comunidade ressaltam a importância de continuar resistindo, lutando.
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Eurides diz que participou em 2018 de uma reunião com o procurador do Ministério Público em Santos, Antônio Daloia (que atualmente está no caso), e com médicos e funcionários do setor da saúde de São Vicente, quando anunciaram a realização de uma cartilha com esclarecimentos à população. O conteúdo da cartilha informava que a contaminação provocada pelos lixões na área continental se estenderá por pelo menos cem anos. Por conta da pandemia da covid-19, essas reuniões com a comunidade deixaram de acontecer.
“é um trabalho que ainda precisa avançar muito. Mas nós estamos ficando velhos, eu, o Francisco, o Luiz, e isso não pode parar aqui. Senão daqui a pouco ninguém vai cobrar”.
Maria Eurides Pereira
“A Rhodia tem uma dívida com a gente. Se por cem anos nós vamos ter problemas, precisamos ter todos os recursos de exames e tratamentos pagos pela Rhodia. Ela deveria estar trazendo para a área continental um hospital onde essa população pudesse ser assistida, ter um tratamento adequado”, diz Eurides.
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“Por isso que eu digo, é um trabalho que ainda precisa avançar
muito. Mas nós estamos ficando velhos, eu, o Francisco, o Luiz, e isso não pode parar aqui. Senão daqui a pouco ninguém vai cobrar”.
A Associação de Combate aos Poluentes (ACPO), fundada em 1994, foi formada por trabalhadores que buscavam defender os interesses da classe, principalmente daqueles contaminados pelos organoclorados. Hoje, a ação da entidade se expandiu também para a defesa do meio ambiente e dos direitos humanos.
Segundo o representante que concedeu a entrevista à equipe da Viral, tudo o que a ACPO publica é monitorado pela Rhodia. Por isso, ele preferiu não se identificar, com medo de sofrer represálias no âmbito jurídico.
“Os trabalhadores que saíram da empresa perderam a carteirinha da Unimed e dependem da autorização da Rhodia para ir ao médico. Alguns já passaram pelo constrangimento de a empresa não ter liberado o atendimento”, conta o representante.
O mini documentário "Estação de Espera" mostra a Área Continental décadas após o caso que marcou a vida de seus moradores.
DÍVIDA COM A SOCIEDADE
A fábrica da Rhodia foi fechada em 7 de junho de 1993, em uma ação promovida pelo Ministério Público, que determinava o desligamento de todas as suas atividades na região.
Uma pesquisa geológica feita no subsolo da empresa revelou que, ao longo dos anos, cerca de 3.784 toneladas de resíduos de produção e outras 20 toneladas de pó da China foram despejadas em um depósito clandestino nos fundos da fábrica.
Em 1995, depois de quase 20 anos desde o começo dos descartes ilegais de lixo químico, o Ministério Público propôs um acordo judicial com a Rhodia. A decisão foi tomada para diminuir o tempo de um processo, que poderia se estender por anos, o que agravaria a situação dos trabalhadores e retardaria a recuperação ambiental das áreas atingidas.
Decidiu-se que a empresa garantiria os empregos dos trabalhadores por quatro anos, período que poderia ser estendido, custeando exames e tratamentos médicos e também de ex-funcionários. Além disso, a Rhodia comprometia-se a arcar com os custos da avaliação e descontaminação do solo.
O juiz Carlos Fonseca Monnerat determinou que a Rhodia providenciasse um sistema de contenção de poluentes tanto do solo quanto do aquífero afetados, além de guardar as áreas afetadas e não utilizá-las para nenhum fim comercial ou industrial, apenas atividades científicas. Até os dias atuais, funcionários da empresa são disponibilizados para fazer a guarda de tal perímetro afetado.
A decisão judicial estabelecia ainda que a empresa disponibilizasse água potável para a população atingida e estipulou o pagamento de cerca de 8 milhões de reais ao Fundo de Reparação Ambiental.
Também em 1995, a Rhodia assinou um novo acordo, desta vez intermediado pelo sindicato dos trabalhadores. O chamado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) adveio da 1º Vara Judicial da Comarca de Cubatão. Entre os termos do acordo, estavam o diagnóstico das quantidades de resíduos sólidos industriais nos solos contaminados; o tratamento da água subterrânea nas dependências da fábrica; exames químicos e laboratoriais dos funcionários, além da garantia de emprego por quatro anos.
De acordo com o procurador do Ministério Público Antônio Daloia, a investigação foi desmembrada para um inquérito separado, pois a intenção é descobrir se há outros locais de despejo.
“Nós pedimos um aprofundamento dessa investigação porque apesar de terem sido tomadas muitas providências na época para isolar as áreas, isso não significa, segundo a própria indicação da Cetesb, que todas as áreas tenham ficado devidamente finalizadas e que todos os resíduos tenham sido removidos”, explica o promotor.
O Ministério Público, segundo Daloia, tem se empenhado também na concretização do que foi proposto pelo estudo epidemiológico feito pelo Ministério da Saúde sobre a necessidade de capacitação de equipes de saúde para lidar com a contaminação ambiental específica da região. “Foi feito um treinamento e agora eles estão trabalhando na aplicação de um protocolo de saúde e outras medidas”, diz o promotor.
A PALAVRA DA CETESB
A reportagem da Viral entrou em contato com a Cetesb, que respondeu em nota que, “no segundo semestre de 1984, a Cetesb recebeu denúncia da Prefeitura Municipal de São Vicente sobre a existência de resíduos nas áreas do km 67 e do Quarentenário. O assunto passou, então, a ser atendido de forma global e culminou no Programa de Remoção e Estocagem de Resíduos Industriais, aprovado pelas autoridades competentes (Saúde, Trabalho, Cetesb e Prefeitura), que norteou a Ação Civil Pública de 09/06/1986, movida pelo Ministério Público e Prefeitura Municipal de São Vicente, contra a Rhodia.”
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Declarou ainda que, em agosto do mesmo ano, após determinação judicial, foram iniciadas as operações de remoção, acondicionamento em mag-sacs, transporte e armazenagem na Estação de Espera dos resíduos provenientes das áreas contaminadas, sob a fiscalização de técnicos da Cetesb, efetuada por vistorias periódicas em campo.
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“Ao mesmo tempo em que os trabalhos de remoção eram efetuados, e em atenção a exigência da Cetesb, iniciou-se a implantação de poços para monitoramento das águas subterrâneas para se determinar a pluma de contaminação, bem como acompanhar a eficácia do processo de descontaminação das áreas afetadas", continua o texto.
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A Cetesb afirma ainda que efetuou amostragens de espécies aquáticas (peixes, crustáceos etc.) e detectou contaminação por organoclorados (hexaclorobenzeno). Também, realizou análises de amostras de poços de água de residências das áreas mais críticas (área de interesse), cujos resultados foram encaminhados à autoridade de saúde para tomada de ações de sua competência visando a proteção da saúde pública.
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No que se refere aos riscos associados aos resíduos organoclorados, a Cetesb diz que, na ocasião, participou de reuniões com outras autoridades governamentais e segmentos representativos da sociedade para discussão do problema. Essas reuniões culminaram com anúncios que objetivaram a não ocupação das áreas suspeitas, o impedimento do uso do aquífero freático para fins de abastecimento, a restrição à pesca, à prática de esportes recreativos etc.
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De acordo com a Cetesb, todas as denúncias da população relativas a eventuais novos depósitos de resíduos foram objeto de investigação por parte da companhia. “Sempre houve preocupação por parte desta companhia quanto à extensão da contaminação causada pela Rhodia, uma vez que aquela empresa não se preocupou em catalogar e controlar as áreas utilizadas para deposição de resíduos.”
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A companhia diz ainda que, também, por ser uma preocupação sua, exigiu-se da Rhodia a apresentação de um plano e respectivo cronograma para execução de prospecções para identificação de locais com deposição de resíduos químicos industriais organoclorados nas regiões da Baixada Santista e Litoral Sul, contemplando os municípios de Peruíbe, Itanhaém, Mongaguá, Praia Grande, São Vicente, Cubatão, Guarujá e Santos.
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“Sempre houve preocupação por parte desta companhia quanto à extensão da contaminação causada pela Rhodia, uma vez que aquela empresa não se preocupou em catalogar e controlar as áreas utilizadas para deposição de resíduos”
Cetesb, em resposta à revista Viral
“Tal plano, denominado Plano de Ação para Prospecção Geoquímica de Resíduos Industriais Organoclorados por Sensoriamento Remoto, ou, resumidamente, Projeto Baixada Santista, foi analisado e aceito pela Cetesb, com o apoio do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A identificação das áreas suspeitas de contaminação teve por base a utilização de técnicas de sensoriamento remoto, mediante fotointerpretação e processamento digital em fotografias aéreas ampliadas. Após a localização, as áreas foram inspecionadas "in loco" e foram submetidas a prospecções geoquímicas com coletas de amostras e análises laboratoriais”, prossegue a nota.
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Sobre a situação atual, a Cetesb diz que “todas as áreas identificadas, sob a responsabilidade da Rhodia, encontram-se sinalizadas, cercadas, vigiadas e contam com monitoramento de águas subterrâneas. As áreas de São Vicente e o Sítio do Coca (Itanhaém) têm suas águas subterrâneas tratadas.”
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Segundo ela, o tratamento das águas subterrâneas do sítio do PI-05 foi suspenso temporariamente, uma vez que foram obtidos níveis satisfatórios nessas águas. Entretanto, o monitoramento continua sendo executado e os resultados entregues à Cetesb para confirmação dos resultados de descontaminação obtidos.
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A Cetesb afirma que o efluente de todas as estações de tratamento é analisado semanalmente e os resultados encaminhados à Cetesb que, periodicamente, efetua contraprovas. Os resultados obtidos, diz ainda, têm comprovado a remoção dos contaminantes.
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Ao final, a Cetesb declara que “Mesmo ciente que as plumas de contaminação do aquífero das áreas de São Vicente estão contidas pelas barreiras hidráulicas implantadas em cada área, a Cetesb, na busca da proteção ambiental e da saúde pública, exigiu da empresa Rhodia, desde 2008, a implantação de poços multiníveis para determinar possíveis plumas de contaminação, permitindo, com isso, a pronta ação para impedir qualquer possibilidade de fuga dessas plumas das áreas monitoradas.”
O QUE DIZ A RHODIA
Em nota endereçada à equipe de reportagem da revista Viral via e-mail, a Rhodia afirmou que “tem dado um tratamento responsável e correto à questão da sua atuação na Baixada Santista, desde que tomou conhecimento do assunto ‘contaminação de áreas e de empregados’, valorizando todas as iniciativas relativas ao meio ambiente e aos seus empregados”.
A empresa garante que todos os locais de responsabilidade da Rhodia na região da Baixada Santista “são monitorados e fiscalizados pelas autoridades, sem causar riscos às comunidades ou ao meio ambiente”.
“Nesses locais, a empresa realiza projetos de recuperação ambiental, aplicando as melhores ferramentas tecnológicas disponíveis, além de fazer todos os investimentos necessários para resolver definitivamente essa questão”, prossegue a nota.
A Rhodia informa que o trabalho de recuperação das áreas “é permanente e tem evoluído gradativamente: algumas das áreas na Baixada Santista já encerraram seus projetos e a Cetesb emitiu parecer com a liberação desses locais”. A indústria assegura ainda que investe em tecnologias que possam “acelerar a recuperação total” das áreas contaminadas.
Em relação aos empregados e ex-empregados de Cubatão, a empresa alega que cumpre rigorosamente o termo de ajustamento de conduta assinado em 1995 e que todas as ações da empresa relacionadas ao assunto seguem as decisões proferidas pelo Poder Judiciário e são acompanhadas pelas autoridades.
Encerrando à nota à Viral, a Rhodia informa que “a unidade química de Cubatão (SP) teve sua produção desativada em 1993, mesmo assim a empresa mantém ativos os contratos de todos os trabalhadores beneficiários do TAC. Nos casos de inexistência de postos de trabalho, a empresa, por mera liberalidade, coloca os empregados em licença remunerada.”