CAVA OU COVA? O DILEMA DE CONCILIAR QUALIDADE DE VIDA E DESENVOLVIMENTO
Após anos acumulando resíduos tóxicos, cava subaquática é ameaça constante de danos irreparáveis à comunidade e ao ecossistema da região de Cubatão
João Hiroshi, Victor Vieira, Lívia Abreu e Marcela Rodrigues - 25/06/2021
Do alto o que se vê é um cerco, semelhante a uma grande rede de pesca, traçando um círculo mal-ajambrado nas águas turvas do Canal de Piaçaguera que desemboca no estuário de Santos, praticamente encostando na área de manguezal. Fica bem na divisa entre Santos e Cubatão, numa região chamada Largo do Casqueiro, mas passa quase despercebido, tanto que a maioria dos habitantes da Baixada Santista provavelmente não sabe de sua existência.
Objeto de disputa entre ambientalistas e gestores da administração portuária, a cava subaquática de Santos e Cubatão é hoje um dos grandes desafios ambientais da região.
Com risco de transbordar e afetar a vida da comunidade nos arredores, ela está ali há quase meio século, período em que vem servindo de depósito para resíduos tóxicos oriundos do polo industrial de Cubatão. Calcula-se que ali estão mais de 2,4 bilhões de litros de lodo contaminado, dragados do Canal de Piaçaguera durante obras de alargamento dos terminais portuários.
Os rejeitos - basicamente óxido de ferro, amônia, sílica, silte e argila -, misturam-se à água de córregos, geralmente com outros contaminantes diluídos, agravando os danos ambientais. Foi só em 1996 que a preocupação com a cava subaquática veio à tona. Na época foi constatado alto grau de contaminação da água, o que levou à proibição da dragagem do canal. “A escavação dos sedimentos para jogá-los dentro da cava ocasionou a dispersão de poluentes. O material que estava parado no fundo do mar se espalhou nas águas, atingindo regiões que não estavam contaminadas”, explica Jeffer Castelo Branco, especialista em análise socioambiental.
Arquivo Pessoal - Jeffer Castelo Branco
Jeffer Castelo Branco é pesquisador de Economia Solidária, Meio Ambiente e Saúde Socioambiental.
Arquivo Pessoal - Jeffer Castelo Branco
A Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), órgão responsável pela aprovação das obras, garante que todo processo foi monitorado. “Houve acompanhamento das atividades de abertura da cava, do lançamento dos sedimentos dragados no interior da cava e de seu recobrimento. As atividades transcorreram dentro da normalidade, sem desconformidades operacionais e ambientais”, adverte a nota oficial da agência.
A cava tem 400 metros de diâmetro e 25 metros de profundidade. É maior que o estádio do Maracanã e foi instalada pelas indústrias do polo industrial de Cubatão, principalmente pela antiga Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), que hoje tem seu controle acionário em poder da Usiminas. Atualmente, a cava está sob a responsabilidade da VLI Multimodal S.A. (Valor da Logística Integrada, empresa ligada à Vale).
Procurada pela nossa equipe, a VLI diz que o método de confinamento de sedimentos foi “indicado e aprovado pelos órgãos ambientais”. Além disso, a empresa aproveitou para afirmar que “promove oficinas educacionais na região, atividades estas que contemplam colônias de pescadores formalizadas da Baixada Santista”.
"NÓS NÃO QUEREMOS ESSES CURSOS QUE ELES DISPONIBILIZAM. NÓS QUEREMOS UMA CONTRAPARTIDA QUE DÊ ESTRUTURA PARA QUE A CULTURA CAIÇARA NÃO ACABe, PARA QUE OS PESCADORES POSSAM CONTINUAR FAZENDO SEUS BARQUINHOS ARTESANAIS E IREM PESCAR"
MARLY VICENTE DA SILVA
Os grupos industriais que atuam na região têm interesse na ampliação do terminal portuário Tiplam (controlado pela VLI), localizado no estuário do Porto de Santos. Para isso, em 2017 realizaram uma obra de dragagem no canal de Piaçaguera que retirou cerca de 14,5 metros cúbicos de sedimento (apesar de nos estudos iniciais ter a previsão de 12 metros), também com o aval da Cetesb. A obra tinha como meta aumentar em até seis vezes a capacidade do terminal, permitindo o fluxo de navios maiores. Sem a dragagem, os navios ficariam encalhados no canal, o que prejudicaria toda a logística das empresas.
Arquivo Pessoal - Jeffer Castelo Branco
Visão da delimitação da Cava Subaquática de Cubatão
As pesquisas que precederam a obra, no entanto, começaram em 2002, quando a Cetesb recebeu o estudo de impacto ambiental (EIA/Rima) da dragagem, apresentado pela Cosipa. No ano seguinte, o órgão concedeu a licença prévia da obra, com validade de cinco anos. Em 2017 a Cetesb concedeu a licença definitiva, quase sete anos após o vencimento do licenciamento prévio.
A cratera no fundo do mar já havia sido alvo de ações dos Ministérios Públicos Federal e do Estado de São Paulo em outubro daquele mesmo ano para que fosse determinada a suspensão da licença de operação.
A Cetesb afirma que a concessão da licença teve embasamento técnico, determinando-se “ o cumprimento das exigências formuladas nas licenças, incluindo a licença de operação, com o rigor técnico necessário, além do devido acompanhamento da evolução da qualidade ambiental esperada”, esclareceu a estatal em nota.
Vida marinha
Lívia Abreu
Marly Vicente da Silva, líder comunitária da Vila dos Pescadores, preocupa-se com o futuro da pesca na região
Somente dois quilômetros separam a cava subaquática da Vila dos Pescadores, comunidade de 20 mil habitantes às margens do canal de Piaçaguera. Além da proximidade com a comunidade, a presença da cava é considerada uma ameaça a uma grande área de manguezal. Os peixes, crustáceos e moluscos da região têm garantido por décadas o sustento de mais de 200 pescadores e suas famílias.
Sentada em um barco azul na beira do Largo do Casqueiro, Marly Vicente da Silva, presidente da Associação Comunitária da Vila dos Pescadores, manifesta sua preocupação com as consequências da cava.
"ESSE BERÇÁRIO MARÍTIMO ESTÁ CAMINHANDO PARA a EXTINÇÃO. OS PESCADORES RELATAM QUE O MAR ESTÁ MUDANDO, QUE OS PEIXES ESTÃO DIMINUINDO.O PESCADOR É VISTO COMO ALGUÉM QUE VENDE UM PRODUTO CONTAMINADO. A CONTAMINAÇÃO FICA NA VÍSCERA DO PEIXE, NÃO NA CARNE, MAS ATÉ ONDE ISSO É SEGURO PARA CONSUMO? "
MARLY VICENTE DA SILVA
A preocupação de Marly e dos moradores chegou ao deputado estadual Luiz Fernando Teixeira (PT). A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), em fevereiro de 2021, aprovou requerimento do deputado para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com a finalidade de investigar irregularidades envolvendo os processos de licenciamento e monitoramento da cava subaquática no estuário. "Eu propus a CPI para saber se a Cetesb fez a análise dos peixes e para confirmar se há realmente contaminação. Muita gente come e vende os crustáceos retirados dali".
Arquivo Pessoal - Marly Vicente da Silva
Em uma das vezes que foi ao local, o deputado diz que se deparou com um cenário onde não havia separação alguma entre a cava e o habitat natural de peixes, que pulavam de dentro para fora da cava.
A preocupação é compartilhada por Castelo Branco: “Na cava não há uma sinalização, apenas uma “cortina de silte” que teoricamente deveria impedir a passagem de sedimentos para a água do estuário, porém se os organismos do mangue estão contaminados certamente isso não ocorre”.
A líder da Vila dos Pescadores luta para que se encontre uma solução satisfatória para a comunidade.
"TEM QUE EXISTIR MENTES PENSANTES QUE ENCONTREM UMA SAÍDA, PARA DAR UM EQUILÍBRIO ENTRE DESENVOLVIMENTO E HARMONIA COM AS PESSOAS E COM O MEIO AMBIENTE. PORQUE SENÃO DAQUI A POUCO A GENTE VAI VOLTAR OU PARA AS CAVERNAS OU PARA A SENZALA "
MARLY VICENTE DA SILVA
Apesar das queixas dos pescadores, a Cetesb afirma que tem uma boa relação com a comunidade. “O relacionamento do empreendimento com as lideranças formais de pesca que compõem a área de influência da atividade de dragagem é considerado bom e estável”.
Soluções à vista:
Em 2020, a empresa VLI iniciou a fase de fechamento - cobertura completa da cava subaquática, a fim de reduzir o risco ambiental. As operações na cava consistem no revestimento dos resíduos tóxicos com uma camada de sedimentos marinhos da própria região. A ação foi apontada pela empresa como responsável por “melhorar a qualidade da água e pesca artesanal”. Ainda foi anunciado o monitoramento constante para avaliar a qualidade da água, sedimentos e aves locais, como o guará.
Para Marly, uma das soluções seria uma presença maior das empresas responsáveis e os órgãos regulamentadores na assistência à comunidade que ali vive. "Queremos que eles enxerguem que a pesca é um elemento da cultura caiçara, preservem a nossa área e contribuam".
A líder comunitária ressalta a necessidade de uma relação mais "transparente e próxima". "Que considerem que somos seres humanos que vivemos aqui. Precisamos de mentes pensantes que desenvolvam uma harmonia entre o desenvolvimento e o meio ambiente".
O que é uma cava subaquática?
Divulgação VLI
O mapa mostra o local da cava subaquática e toda a extensão do canal Piaçaguera.
Cavas são estruturas subaquáticas para contenção ou acumulação de sedimentos tóxicos. Existem vários tipos de cavas, mas duas são as principais, a confinada e a contida. A confinada é instalada normalmente em estuários e margens de rios, o que possibilita o isolamento com uma parede de concreto e a vedação da área para que o seu conteúdo não contamine a água e nem o entorno. Já a cava contida é feita em alto-mar.