Dá pra mudar?
Como uma série de rupturas transformou a vida de um ativista
Bianca Franzosi e Karina Ramos
“Não estou acostumado a falar de mim mesmo” dizia de vez em quando “mas tá sendo uma experiência legal me abrir assim com vocês” e então continuava contando a história de si mesmo.
Geraldo Varjabedian viveu a maior parte da sua vida no ABC Paulista, mas sempre frequentando a Baixada Santista por conta de uma casa que a família possuía na praia do Guaiuba, no Guarujá. Sua cor favorita, no momento da entrevista, era vermelho. A primeira, e e única faculdade que cursou foi de Letras, na USP. Sua estação favorita é verão e sua família é de origem armênia.
O RIO
Este homem é uma das cabeças por trás do Movimento Popular Salve o Rio Itapanhaú na cidade de Bertioga. Em 2014, o governo do estado anunciou a realização de obras de transposição do rio por conta da crise hídrica da capital e o coletivo ambientalista da cidade vem tentando frear este projeto desde então.
Além da possibilidade de haver falta d’água na Baixada Santista durante a alta temporada, os ambientalistas acreditam que a transposição rio causará diversos outros problemas para o bioma e economia local. A retirada de 216 milhões de litros por dia, de acordo com a Sabesp, alterará drasticamente a salinidade dos manguezais ali presentes, prejudicando diversas espécies que usam esse ambiente para reprodução, além da paisagem e flora locais. Muitas pessoas dessa região são dependentes da pesca, da coleta de caranguejos, da apicultura e do turismo ecológico. Portanto a mudança nesse bioma acarreta diversas outras questões econômicas e sociais.
"A Baixada santista que eu tô falando não existe mais"
Devido a crise hídrica na capital paulista, o então governador Geraldo Alckmin propôs a transposição das águas da bacia do Itapanhaú, formada também pelos rios Itatinga, Sertãozinho e Mogi, para abastecer a região metropolitana de São Paulo. A partir de 2017, o coletivo de educadores ambientais da cidade começou a desenvolver projetos de conscientização da população em relação à importância do rio.
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Foto: Movimento Popular Salve o Rio Itapanhaú
Protesto feito em janeiro de 2018 que reuniu ativistas, turistas, munícipes de Bertioga e indígenas
Em janeiro do ano seguinte, o governo do estado afirmou que liberaria metade da verba do projeto para dar início às obras. Aproveitando a presença dos turistas e o clima já tenso causado pelo estresse, calor e falta d’água, aquele mesmo coletivo marcou um protesto na ponte sobre o rio Itapanhaú. “Na cabeça da gente, era um protesto pra umas 200 a 300 pessoas” recorda Geraldo. A manifestação conseguiu reunir 1500 pessoas, entre turistas, bertioguenses, pescadores e indígenas. “Foi quando a gente percebeu que não era uma preocupação só de ambientalistas, mas algo que mexia com o pertencimento dos cidadãos de Berioga”, diz. Daí em diante, o coletivo cresceu e ganhou nome: Movimento Popular Salve o Rio Itapanhaú.
PRÉ-RUPTURA
Desde muito novo sempre esteve em contato com a natureza por causa de seus pais, que, mesmo vivendo nos arredores de São Paulo, sempre preferiram a tranquilidade das paisagens desertas. Além dos fins de semana e feriados nas praias do Guarujá, a família frequentemente ia acampar em campings selvagens, quando isso ainda existia pela região. “A Baixada Santista que eu tô falando não existe mais. Quando meu velho construiu a casa no Guaiuba, não tinha nem cinco casas na nossa rua.”
Ele entrou na faculdade de Letras, na USP, no início dos anos 1980, quando a ditadura militar iniciava um processo de reabertura política e todas as áreas se mobilizavam pela volta de seus direitos. “A gente mal tinha aula, porque os professores estavam quase sempre em greve, então eu e mais uma turminha íamos para outros institutos e assistíamos outras aulas que achássemos interessantes.”
Foi a época que ele ingressou no movimento estudantil e passou a ser um militante das causas sociais. “Entrei em Letras achando que eu ia escrever”, comenta, mas a vida o levou para outros caminhos. O sonho de ser escritor ficou engavetado momentaneamente pela necessidade de fazer dinheiro e pagar contas, o que o levou a trabalhar com o pai na área comercial. Desde novo sempre foi tomado como certo de que ele herdaria a fábrica do pai no futuro, o que fechou o espaço para sonhos infantis de profissão.
"Se você tirar tudo de mim, o que resta é um escritor. É isso que eu sou"
Era um conflito interno complicado querer fazer o que ama ao mesmo tempo em que procurava cumprir com as exigências da família. “Eu não podia ser o que eles queriam, meu pulso sempre foi pra arte. Mas, por muito tempo, até entender isso com clareza, querer ser o que eles queriam que que fosse, foi uma prisão pra mim.”
PAPEL
“Se você tirar tudo de mim, o que resta é um escritor. É isso que eu sou. Todo o resto são máscaras que eu uso conforme a minha necessidade não-vocacional”. A pegada ecológica e a literatura sempre estiveram em seu íntimo e, juntando as duas, decidiu publicar suas poesias em papel manilha, que era reciclado usado geralmente para embrulhos. Esse papel só era vendido em rolo, então o trabalho de transformá-lo em resma para a impressão foi todo seu.
Com os seus poemas impressos ele saiu distribuindo-os em bares e pontos movimentados, como a rua Augusta, em São Paulo. A inovação de fazer uma publicação com papel reciclado foi extremamente bem recebida pelo público, que enaltecia sua preocupação com o meio ambiente. Porém, na tentativa de fazer uma segunda edição, o responsável pela gráfica não quis fazer o serviço por conta dos resíduos que o papel deixou na impressora da última vez.
O contratempo não o fez desistir do papel reciclado. “Na época fazia sentido, todo mundo acreditava que a reciclagem era o que ia salvar o mundo”. Foi com essa vontade de salvar o mundo que ele resolveu participar da ECO 92, no Rio de Janeiro, a primeira conferência sobre meio ambiente promovida pelas Nações Unidas para discutir problemas e possíveis soluções. O encontro reforçou sua convicção sobre a luta pelo meio ambiente e voltou do Rio com seu porta-malas lotado de papel reciclado para vender na capital paulista.
"na época fazia sentido. todo mundo achava que a reciclagem era o que ia salvar o mundo"
Logo estava abrindo a sua primeira empresa, um ateliê de produtos de papelaria para eventos em papel reciclado, como pastas, blocos e tubetes de caneta. Era um processo 100% artesanal que conseguia se encaixar num meio termo entre a gráfica industrial e o corte manual. O processo de produção desses produtos impede que sejam baratos, e assim, ele acabou se afastando das lutas socias que eram o que mais lhe importava, na questão do ativismo.
TECIDO
“Um dia eu me deparei com um processo de reciclagem de tecido, aí eu falei ‘agora eu vou enlouquecer’”. Nessa época, Varjabedian já era casado, depois de um longo namoro, com a futura mãe de suas duas filhas – que se manteve anônima durante toda a entrevista – e os dois ainda tocavam o ateliê de produtos reciclados.
Para arrumar os tecidos, eles visitavam confecções e conseguiam tecidos de coleções anteriores que sobravam no estoque e não seriam mais utilizados. Os dois pintavam novamente esses tecidos, utilizando técnicas como marmorização em gel e os revendiam para as confecções. “Eram coisas lindas, maravilhosas mesmo, mas comercialmente, não deram o retorno desejado”.
Depois, começaram a participar do Mercado Mundo Mix, um evento multicultural que nasceu em 1994 e reúne diversas expressões artísticas, mas principalmente focado na moda. E nele continuaram por uns seis ou oito anos, até serem descobertos pela Ellus, uma marca de jeans brasileira, com sede em Minas Gerais.
“Aí, era só alegria, passamos a pintar diversas peças para a marca, e nos tornamos ‘queridinhos da moda’”, afirma Geraldo. Entretanto, a parceria com a grife não foi tão duradoura “quando você vira um ‘queridinho da moda’ nunca é por muito tempo, porque a própria moda é efêmera”.
LAÇOS
“Botar filho nesse mundo é uma alucinação” mesmo tendo se distanciado um pouco do ativismo ambiental, não era como se esses conceitos o tivessem deixado completamente. A insistência em trabalhar apenas com papel reciclado era prova disso. Uma consciência escondida ainda chamava atenção para os problemas climáticos, a contaminação do solo e a falta d’água, problemas que sobrariam justamente para esses filhos resolverem.
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"eu queria dar a ela a mesma qualidade de vida que eu tive na minha infância"
Mesmo assim, nasceu Marina, a primeira filha do casal. Uma garota inteligente e “mais controladora que eu”, na voz de Varjabedian. Aos dois anos ela enfiou um gato em casa depois de criar toda uma situação favorável, mesmo que Geraldo desprezasse gatos com todas as forças, e o bichano foi ficando, até que ele descobriu que não era alérgico como pensava e que gatos podem ser ótimas companhias.
Quando Marina completou um ano de idade, a família se mudou para Bertioga, que ainda era bem preservada. “Eu queria dar a ela a mesma qualidade de vida que eu tive na minha infância”. Ao mesmo tempo que os primeiros anos em Bertioga foram bons, foi quando Geraldo começou a sentir os primeiros sinais de uma depressão que não o largaria tão cedo. Ainda com o ateliê em São Paulo, a rotina de cumprir prazos e manter contato com os clientes foi ficando cada vez mais difícil.
Em 2003, sua segunda filha, Gabriela estava por nascer. E foi nessa época que o então presidente Lula, abriu a importação de tecidos de vários países do leste asiático que já trabalhavam com tons e padronagens nunca antes vistos no Brasil. Foram sete coleções canceladas, que tiveram de ser reinventadas para utilizar essa variação nova de tecidos ao invés das pinturas de Varjabedian.
Essa foi a gota d’água para que sua saúde mental despencasse de vez, afundando em uma depressão. Não muito tempo depois, decidiu fechar o ateliê e trabalhar em casa. Isso o permitiu passar mais tempo em casa com as suas meninas. “Foi o grande ganho do processo, nós nos aproximamos bastante e hoje somos muito ligados mesmo. A mais velha até tem a pegada ambiental por causa dessa convivência”, conta.
Não muito tempo depois, o relacionamento entre ele e a ex esposa começa a desandar com muitas brigas ameaças de separação que nunca se concretizavam porque as filhas ainda eram muito pequenas. E no meio desse rolo todo, Varjabedian começou a frequentar as reuniões da Agenda 21 em Bertioga, fazendo reacender dentro dele a luz do ativismo ambiental.
RUPTURA
“Cara, dá pra mudar!” era o pensamento que ocorreu a Geraldo quando estava em sua barraca no terreno comprado ao lado de sua antiga casa em Bertioga. Sua vida agora era gerida pelo quarto capítulo da Agenda 21: Mudança dos Hábitos de Produção e Consumo. Após o divórcio e a mudança da família para Santos, ele ficou acampado no terreno que haviam comprado ao lado da casa que moravam contando os centavos para comer e conseguir ver as filhas uma vez por semana.
Já sendo um membro ativo das reuniões da Agenda, começou a buscar fazer a diferença por meio daquilo que fazia de melhor: escrever. Mandava textos para todos os jornais da cidade e até criou uma rádio comunitária. Mas o dinheiro não era nem próximo do suficiente.
“Foi a reflexão de um tempo que eu tive que romper com muitas coisas”, mas mesmo com todas as dificuldades econômicas e emocionais, ele foi percebendo algumas qualidades que começara a adquirir nesse novo estilo de vida: não tinha mais chão pra varrer, tomada pra arrumar, todas aquelas cobranças da rotina de classe média haviam desaparecido.
Foi nesse momento que ele entrou em contato com as PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais), que são espécies que você encontra na rua ou em casa, pois elas crescem espontaneamente e chegam a ser até mais nutritivas que outras verduras mais comuns.
Entre salgado e doce, ele prefere o os salgados, mas faz questão de relembrar dos amargos e azedos que ele aprendeu a apreciar principalmente graças às PANC, o que não exclui completamente eventuais desejos de comer algo doce, que ele chama ironicamente de “surtos de formiga”. Mesmo assim, a questão do gosto, do desejar, deixou de ser importante pra ele “foi um dos conceitos que eu fui rompendo”. Coisas simples, mas que ele fez questão de mencionar como coisas que ele gosta são verduras, limão e coisas temperadas com alho. Mas todas essas são coisas que ele foi se habituando a gostar graças ao seu novo estilo de vida.
Embora seja favorável ao veganismo, o único alimento que continua um tanto “mal resolvido” é o peixe. Como ele é amigo de pescadores, ele ganha peixes de vez em quando, e não há porque jogar fora, nem que ele use para fazer a comida do gato e tome só o caldo, como ele comentou. Mas também não existe um grande esforço para abandonar o consumo de peixe de vez: “eu não quero resolver. É memória afetiva e eu gosto muito”
Por mais que haja certas coisas que não foi capaz de deixar para trás, praticamente todo o estilo de vida das grandes cidades, pautado no consumo foi abandonado. E ao se reinventar dessa maneira, Geraldo não vê a necessidade de definir “o indefinível” de acordo com ele. “Eu sou uma pessoa volátil, se me der dois minutos eu posso largar o ambientalismo e começar a escrever, do mesmo jeito que no dia seguinte posso voltar a luta como se nada tivesse acontecido” pra ele não é interessante estipular estigmas que algum tempo depois não serão verdadeiros “e isso é libertador”
ATIVISMO
Como educador ambiental e como ativista, Geraldo é pautado por essa ideia de mudança de hábitos, de enxergar a natureza de forma diferente, como uma aliada. Toda essa experiência mostrou que é possível abandonar velhas dinâmicas insustentáveis e viver em harmonia com o mundo que nos rodeia “O que realmente me interessa nesse processo de mobilização é que as pessoas mudem a forma que lidam com a água, que despertem pra uma consciência que não tinham antes.”
Ainda assim, luta pela não transposição do Rio itapanhaú ele acredita ser uma causa perdida. O desmatamento da Floresta Amazônica, entre muitos outros prejuízos causou a mudança no fluxo dos rios voadores, que traziam chuva para a região sudeste. “Estamos apenas entrando numa crise hídrica ainda maior que a anterior e o Estado não vai abrir mão do projeto”, lamenta.
Por mais que o rio tenha perdido, a causa continua no coração das pessoas, essa consciência, a mobilização e o aprendizado são o que vão ficar. Tudo que foi feito pelo Itapanhaú, tanto os erros como os acertos, só foi possível graças a vontade do que ele chama de “núcleo duro dos macacos velhos” do movimento.
Ele aguarda o maior engajamento das futuras gerações “O que a galera não entende é que a gente tá doido pra passar o bastão”, brinca. Até existe um interesse de uma juventude universitária, mas nunca tão incisiva como ele gostaria. “No fim, a bomba sempre sobra pros mesmo dois ou três que ainda não desistiram.”, desabafa.
Os movimentos ambientais urgem a participação de jovens em seu meio para dar continuidade a essas lutas, continuar transmitindo um conhecimento que pode levar a uma mudança dentro de cada um e não deixar que essas mobilizações morram.