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Foto: Biga Appes

A sustentável
leveza da arte 

Chico Melo dá nova vida a móveis e madeiras descartadas, unindo técnica e criatividade 

Eduarda Gouveia, Evelyn Nayara, Gabriel Fomm e Maria Eduarda Nascimento

Filho de pai sapateiro e mãe bordadeira, José Francisco Barbosa Melo, mais conhecido como Chico Melo, expressava-se artísticamente antes mesmo de se reconhecer como artista. Ainda menino, na pequena Buriti Bravo, no interior do Maranhão, fazia os próprios brinquedos, restaurava móveis, costurava sapatos e o que mais lhe fosse proposto. Daí em diante, a habilidade na transformação e criação de objetos o aproximou das artes. 

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O convencional não o atraía. Ele descobriu isso quando entrava nas oficinas de marcenaria em busca de restos de madeira. As peças de diferentes tamanhos e formatos tornavam-se o que a imaginação de Chico quisesse. Esta era sua única possibilidade de obter brinquedos, uma vez que os recursos financeiros de sua família supriam somente necessidades essenciais.  

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Da dificuldade que motivou a geração de seus brinquedos, nasceu também a habilidade para criar e reparar coisas. E foi apenas uma questão de tempo para ele ser promovido a “solucionador de problemas da comunidade”. Bastava um perrengue e de pronto ouvia-se: “Chama o filho da dona Creuza”, recorda Chico. Aconteceu até de uma prima não reconhecer um livro com uma encadernação novinha, mas que havia sido dado a ele com a capa destruída. 

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O talento que já era reconhecido por aqueles ao seu redor, não passava pelo entendimento dos mais distantes. Já adolescente, uma de suas maiores frustrações foi a reação de uma professora ao receber a maquete completa de uma casa com um teto capaz de movimentar-se quando estimulado. 

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“Antes de produzirmos, a professora nos mostrou um modelo de estrutura para inspiração. Quando o meu ficou pronto, ela me pediu para dizer a verdade e apontar quem tinha feito o trabalho. Ela não acreditava  em mim. Minha mãe chegou a ser convocada à escola para confirmar minha versão”, lembra, dando risada. 

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Para poder avançar nos estudos, Chico deixou o Maranhão e foi morar em Teresina, no Piauí. Pouco tempo depois, aos 18 anos, iniciava um novo capítulo na vida ao mudar-se para a casa de um de seus 8 irmãos, em Santos. Apesar das dificuldades iniciais de adaptação, a transição do Nordeste para o Sudeste lhe proporcionou grandes experiências.  

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“Só comecei a ter um círculo de amizades depois que uma amiga me levou para um centro de cultura. O pessoal do teatro amador me acolheu e me deixaram ficar ali, produzindo pequenas esculturas”, conta Chico. 

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Foi o momento certo. Ele passou a ajudar o grupo teatral na montagem da cenografia. “Aí foi um passo para o envolvimento. Sempre gostei de todos os segmentos da arte, o teatro, a música, a poesia, a literatura. Nesse um ano e meio que fiquei com eles, foi uma etapa para fazer amigos e estar no meio das artes”, relata o artista.  

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Foto: Eduarda Gouveia
Chico Melo na oficina onde trabalha, no centro de Santos

Meio santista

Chico resolveu usar seu conhecimento em marcenaria e sapataria como meio de subsistência, ao mesmo tempo em que se dedicava às esculturas e ao design de objetos. 

 

Desprovido das ferramentas necessárias, precisou negociar com seus primeiros clientes. Em vez de receber o valor cobrado pelo trabalho, os contratantes providenciaram o maquinário para que o artista fizesse a restauração. A partir daí, novas propostas passaram a surgir na vida profissional de Chico.  

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Mais tarde, criou com outros colegas do meio artístico, o Atelier 44, uma ampla casa na rua Liberdade, em Santos, que era usada como oficina  pelos artistas e espaço para a realização de atividades e eventos culturais.  

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Eclético, ele conta que nunca se limitou a apenas uma modalidade. “Nunca me limitei só às artes plásticas. Sempre aparecia algum trabalho para fazer, como cenografia de escola de samba, de grupos de teatro ou adereços para o pessoal da dança. O que pintava eu fazia para ganhar algum dinheiro para o meu sustento e poder pagar o aluguel do ateliê”, salienta.  

 

Um dos trabalhos para o Carnaval que ele destaca ocorreu em 2015, quando confeccionou penas feitas com garrafas PET para a estilista Sandra Machado, em homenagem às tribos indígenas. A surpresa foi ver seu trabalho na Sapucaí como parte da fantasia de Fafá de Belém, que estava vestida com um cocar contornado por penas vermelhas confeccionadas pelo artista.  

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Amante do trabalho que realiza, Chico reconhece que o dinheiro é apenas uma parte da valorização que um artista pode ter. “Mais do que dinheiro e qualquer outra coisa, o que vale a pena é o reconhecimento das pessoas. Me interessa mais quando a pessoa se identifica e gosta do que eu faço”, explica.

Foto: Fundarpe
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Fafá de Belém usando cocar feito por Chico 

Cenário adverso

A pandemia da covid-19 impactou significativamente entre os artistas que ocupavam o Atelier 44. Em uma fração de meses, a escassez de recursos inviabilizou a continuidade no local. Em 14 de julho do ano passado, o coletivo de artistas que o mantinha anunciou seu fechamento ao público, após 25 anos de existência. “A gente tinha muito medo de se endividar. Compreendo que, para tudo, existe um começo, meio e fim, mesmo não sendo o encerramento desejado. Essa era a única solução”, relembra. 

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Noites em claro de trabalho duro: isso faz parte da rotina de Chico quando recebe encomendas de última hora, agora instalado em uma oficina improvisada em sua casa, em Guarujá. Para ele, é sempre um novo desafio, já que cada um de seus projetos são exclusivos e, consequentemente, idealizados a partir da expressão de sua identidade artística.  

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As encomendas raramente cessam e, geralmente, são solicitados por recomendação de terceiros. Dar mais visibilidade aos projetos nas mídias sociais acaba ficando sempre em segundo plano, mesmo acreditando que obteria mais reconhecimento. 

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Apesar do prestígio adquirido ao longo dos anos, Chico afirma ter muita dificuldade em viver de arte em Santos, o que afeta a precificação dos serviços. “A gente estipula, chuta um preço dentro da realidade local, mas muitas vezes você leva mais tempo do que imaginava para concluir um trabalho. No sistema capitalista há o ditado de que tempo é dinheiro e, no meu caso, eu perco no tempo”.  

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A desvalorização da cultura impacta diretamente em seu trabalho e no lucro, pois muitas vezes os clientes não estão dispostos a pagar valores justos pelo tempo de produção e o esforço aplicado em seu serviço, reflexo de uma arte vista como inferior por ser de um artista local.  

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“A cultura no Brasil não é valorizada como deveria. Não posso generalizar, existem muitas pessoas que valorizam, mas no geral, infelizmente, é assim. Um artista francês é visto de outra maneira. Se você vai estudar fora é visto de uma forma diferente”, desabafa.

 

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“Uma árvore nasceu, cresceu, foi cortada e eu penso quanta energia está naquilo. Aí, as pessoas usam um pouco e depois querem jogar fora. O planeta não aguenta mais isso.”

Ele acredita que a mensagem sobre o reuso de materiais é muito importante para a sociedade, pois o consumo rápido gera um descarte exagerado. “Uma árvore nasceu, cresceu, foi cortada e eu penso quanta energia está naquilo. Aí, as pessoas usam um pouco e depois querem jogar fora. O planeta não aguenta mais isso. Uma restauração pode dar mais 30 anos para um objeto”, afirma. 

Foto: Eduarda Gouveia
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Objetos como janelas e batentes são reutilizados por Chico

Nova identidade

Além da madeira, o artista utiliza vidros e azulejos descartados e, recentemente, adquiriu fragmentos de azulejos da Inglaterra e da Alemanha. A maioria das peças recolhidas por ele, como janelas, portas, cadeiras, guarnições e afins, deixam de ter a função original e surgem novas criações, tendo como princípio reavivar sua aparência sem agredir a essência do material. 

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“Em boa parte das situações, a peça jogada fora é superbonita, mas está sem vida. Por isso, transformo algo sem utilidade como móvel em arte, respeitando, acima de tudo, a energia e o amor que o marceneiro dedicou ao objeto”, declara. 

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Imbuia e peroba são as espécies arbóreas mais frequentes na composição das peças que ele costuma encontrar. A segunda, por exemplo, é uma 

Foto: Arquivo pessoal
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Escultura feita por Chico com materiais reutilizados

das principais causadoras da dor nas costas que lida há anos. Isso porque trata-se de uma madeira pesada, com características específicas - possui interior de cor que varia entre o róseo-amarelado e o amarelo-queimado (com veios ou manchas escuras), a superfície sem lustre, lisa ao tato e cheiro imperceptível. 

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Hoje, com 52 anos, ele não ousa fazer esforços excessivos e coleta apenas materiais próximos de sua oficina.  Em circunstâncias especiais, como quando se deparou com cem janelas sendo descartadas, ele até aciona um meio de transporte para fazer as remoções.  

 

Não seria exagero dizer que a arte determinou o rumo de sua vida pessoal. Foi buscando por desenvolvimento profissional que Chico conheceu Poliana, hoje sua esposa, após começar a cursar Artes Plásticas em uma universidade de Santos anos atrás. As dificuldades financeiras o impediram de prossseguir nos estudos, mas o relacionamento com a colega de faculdade evoluiu para uma vida a dois, que resultou no que ele chama de sua “maior obra de arte”, o filho Miguel.   

 

O artista plástico e marceneiro Chico Melo reaproveita móveis e madeiras descartadas unindo técnica e arte
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