A resposta para uma vida sem lixo
A implantação de um sistema que visa a não geração de resíduos pode ser a solução para problemas ambientais, econômicos e de saúde pública
Bianca Franzosi
Ao início desta matéria, uma reflexão: o que você faz com o papelzinho de bala que acabou de pôr na boca? Joga no lixo, ou seja, joga fora. Mas onde é esse “fora”? Porque o papelzinho vai continuar ali no lixo, vai ser recolhido por uma empresa de limpeza e levado até um lixão ou um aterro sanitário. Ele continua lá, só está fora da sua vista. Porque no fundo, não existe “fora”. Todo o lixo produzido vai continuar no planeta e os seus efeitos vão ser cada vez mais sentidos.
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O que existe atualmente é um sistema de economia linear que funciona de acordo com a lógica e princípio capitalistas. Nele, a matéria-prima é extraída de suas fontes naturais e é vendida para indústrias que vão processá-la até que se torne o produto que será comercializado. Esse bem possui uma vida útil, ou seja, por quanto tempo ele pode ser utilizado sem dar problemas ou parar de funcionar. E depois desse período, é descartado assim como o papelzinho de bala.
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A economia capitalista impõe altíssimos níveis de produção e inovação, incentivando um consumo não consciente, que gera elevados níveis de descarte de resíduos e cada vez mais extração de matéria-prima. Um exemplo são os aparelhos eletrônicos: praticamente todo ano sai uma nova versão de algum aparelho, com algumas evoluções às vezes nem tão significativas. Mas ainda assim, isso dá a impressão de que a vida útil do seu aparelho acabou, quando ele muitas vezes ainda funciona muito bem, só não possui algumas das funções dos aparelhos novos.
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Isso faz com que a geração de lixo seja muito maior do que deveria ser, o que leva à situação atual: o planeta Terra é incapaz de comportar essa quantidade de resíduos e suprir a toda a matéria prima que o mercado exige. Esses recursos levam tempo para se renovarem e o capitalismo não respeita esse tempo.
“Não adianta só resolver os problemas do sistema linear, é preciso toda uma reorganização para que o sistema passe a ser circular”
Beatriz Luz
De acordo com dados de 2019 da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), no Brasil foram geradas cerca de 80 milhões de toneladas de resíduo sólido urbano, que diz respeito a todo o lixo proveniente de atividades de grandes cidades. Desse modo, cada cidadão brasileiro produziu, em média, 370kg de lixo naquele ano.
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A falta de um local adequado para descartes de resíduos levanta questões para além da falta de espaço, como a saúde pública e a preservação do meio ambiente. Com o tempo, esses objetos descartados começam a soltar substâncias nocivas, um chorume, que danifica o solo, as plantas e pode até chegar aos reservatórios subterrâneos de água, chamados de lençol freático.
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Outras maneiras de descarte também agridem o ecossistema e apresentam riscos para os seres humanos. A incineração, por exemplo, destrói os resíduos completamente, mas libera dióxido de carbono – entre outros gases ainda mais tóxicos, dependendo do que está sendo queimado – o que contribui para a poluição atmosférica, outro problema sério há muito tempo discutido.
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No fim das contas, o simples “jogar fora” nunca será uma solução, apenas um adiamento desses problemas. A verdadeira solução se espelha na própria natureza. Quando um animal morre, por exemplo, não existe alguém para recolhê-lo e jogá-lo fora. Ele vai continuar onde caiu até se decompor completamente. Essa matéria-prima em decomposição fortalece as plantas que estão crescendo neste local e outras ainda por vir. Percebe-se então, que o “jogar fora” não existe neste caso, aquilo que, aparentemente, perde o seu valor, sua funcionalidade, vai continuar exercendo uma função num diferente contexto.
Ao espelhar esse sistema na sociedade, percebemos que a solução não está em apenas uma fase do processo, como explica Beatriz Luz, fundadora da Exchange 4 Change Brasil.
É necessário que todas as etapas do processo estejam em sintonia para alcançar a não-produção de resíduos. “Não adianta só resolver os problemas do sistema linear, é preciso toda uma reorganização para que o sistema passe a ser circular”
Foto: Reprodução
Beatriz Luz, fundadora da Excange 4 Change Brasil
E é assim que a chamada Economia Circular funciona. É uma linha de pensamento completamente contra-hegemônica que nega todas as bases do sistema capitalista. Nada efetivamente perde o seu valor, ele só é ressignificado. Da mesma maneira que prega o consumo consciente e o fim do desperdício. Observando por alto, pode parecer impossível instaurar esses valores no sistema econômico atual, mas Luz afirma o contrário: as grandes empresas e indústrias não farão nada que não seja interessante financeiramente, então a jogada está em tornar esses processos viáveis e lucrativos.
Chegou um momento que o ambientalismo não pode mais se dissociar do empreendedorismo. A Economia Circular é a única maneira de inovar sem agredir mais ainda o mundo em que vivemos.
Uma das estratégias que segue esse pensamento é a logística reversa, que consiste nas próprias empresas recolherem os resíduos gerados pelos seus produtos e se encarregarem de sua reciclagem e reutilização. Desse modo, a extração de matéria- prima não será tão recorrente, dando oportunidade para o ambiente se equilibrar novamente.
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O Centro de Reciclagem de Lixo Eletrônico da Fundação Settaport fica localizado na Av. Conselheiro Nébias, 85, no Paquetá.
Na cidade de Santos, há dez anos, um projeto adota esse princípio: é o Centro de Reciclagem de Lixo Eletrônico da Fundação Settaport. Foi criado por Chico Nogueira, que hoje é diretor do sindicato e vereador. O centro recolhe, em média 100 mil toneladas de lixo eletrônico por ano nas cidades de Santos, Guarujá, São Vicente e Cubatão. Nada é deixado para trás, todos os objetos que estiverem em condições de serem reparados ou remontados têm sua vida útil alongada e aquilo que não pode ser reaproveitado é enviado para empresas de reciclagem certificadas.
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Chico Nogueira, fundador da Fundação Settaport e atual vereador.
As máquinas, principalmente computadores, remontadas são doadas para instituições sociais, como creches, escolas e centros de inclusão digital. “Além de uma função ambiental, tem também uma função social e educacional” ressalta o sindicalista sobre os benefícios do projeto.
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O pontapé inicial para a criação do Centro foi o acúmulo de computadores em salas e em containers do porto. De acordo com Nogueira, são 25 mil computadores só na área portuária e, por conta das atualizações de softwares, de tempos em tempos essas
máquinas precisam ser trocadas “Se só na área do porto já tem tudo isso, imagina na comunidade como um todo?” questiona.
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Dos computadores antigos, novos são montados e então doados para entidades sociais.
Para começar a pensar o projeto do Centro, a equipe foi atrás de referências desse tipo de trabalho. A principal foi o CEDIR (Centro de Descarte e Reúso de Resíduos de Informática) da USP, que fazia o trabalho de recolhimento dos equipamentos e os levava ou ao conserto ou à reciclagem. E assim começou a ser montado o primeiro – e único, até hoje – centro de reciclagem de lixo eletrônico da Baixada Santista.
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Os cidadãos podem agendar a retirada e a equipe vai no horário marcado buscar os equipamentos. Depois, eles são pesados e separados por categoria e tudo isso é computado em planilhas, para que se tenha o controle do que está entrando. Em seguida, são separados entre os que podem ser reutilizados dos que vão direto para a reciclagem. “De dois computadores, a gente faz um. Às vezes é só uma peça que está com defeito e nós compramos uma nova para substituir” diz Naira Alonso, coordenadora executiva da Fundação Settaport.
De acordo com dados da Fundação, a média anual de aparelhos recolhidos é de 200 mil toneladas, nas quatro cidades. Em 2020, por conta da pandemia e da crise econômica, esse número caiu pela metade.
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O Centro recebe qualquer eletrodoméstico, que é remontado ou enviado para as recicladoras.
Os objetos que não foram reciclados nem doados participam do Bazar de Eletrônicos, um evento mensal no qual o galpão é aberto ao público e diversos eletro-eletrônicos usados e em bom estado são vendidos a preços acessíveis. São computadores, geladeiras, máquinas de lavar, televisões, entre outros aparelhos, que para alguém não possuíam mais serventia e que agora podem ser úteis para outras pessoas. “Os preços são praticamente simbólicos, cobramos o preço do conserto mesmo ou da peça que teve que ser substituída. Não é muito, mas é o suficiente para pagar o aluguel e o salário dos funcionários”, explica Naira.
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Naira Alonso, coordenadora executiva da Fundação Settaport
Além do trabalho prático de reciclagem, reutilização e destino, o Centro de Reciclagem também promove palestras de conscientização em escolas e empresas ou até nas ruas. Nesses eventos, eles montam um minimuseu com aparelhos antigos que teriam ido para o lixo, se não tivessem sido descartados corretamente. As conversas alertam sobre os prejuízos ao meio ambiente causados pelo descarte indevido de eletrônicos e também como evitar esse desperdício.
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METAIS PESADOS
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Um ponto muito importante, mas que pode passar despercebido por falta de conhecimento do assunto são os danos causados pelos metais pesados à saúde, entre eles, chumbo, mercúrio, arsênio e lítio. Diversos equipamentos eletrônicos possuem essas substâncias em sua composição, como computadores, celulares, televisões e pilhas. Se esses objetos são deixados em qualquer lugar, a chance de alguma pessoa ser contaminada é muito maior.
Ao entrarem em contato com intempéries, os eletrônicos entram em processo de decomposição e essas substâncias tóxicas são liberadas no meio ambiente prejudicando o solo, a água e a saúde de seres vivos.
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A intoxicação por chumbo pode causar perda de apetite, anemia, danos no sistema respiratório, nervoso e digestivo. Em casos muito graves pode até levar a um câncer nos rins e sistema nervoso.
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O mercúrio é um metal que teve seu uso abolido de diversos setores justamente por sua alta toxicidade. Ele possui efeito cumulativo no organismo e é responsável por causar fortes diarreias, inflamações bucais, problemas hepáticos graves, levando a morte em até dois dias, dependendo do caso.
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Famoso por ser utilizado como condutor em fios elétricos, o cobre, em contatos pontuais pode causar vômitos, diarreias, tontura e taquicardia. Em exposições prolongadas, leva à falência hepática.
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A prata, além de ser usada em joias, é também utilizada em baterias de carro e contatos elétricos. A intoxicação pela prata pode levar ao coma e insuficiência na medula óssea. Em casos onde o contato é contínuo, pode causar alergia, deixando a pele, as unhas e as gengivas verde-azuladas.
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De acordo com dados do CETEM (Centro de Tecnologia Mineral), 70% dos resíduos tóxicos encontrados em lixões e aterros são de aparelhos eletrônicos. O reuso, reciclagem e descarte correto desses materiais é um enorme passo para minimizar o vazamento de elementos na natureza.
O cotidiano desafiador de uma vida sem plástico
Consegue imaginar sua vida sem nada de plástico? Bem, tentei dar o meu melhor para entender como seria e esse é meu relato
Karina Ramos
Já declaro: uma rotina 100% sem plástico não existe em uma cidade de médio porte em pleno 2021, muito menos em meio a uma pandemia global em que os produtos essenciais muitas vezes são vendidos em embalagens plásticas. Por esse motivo, o experimento jornalístico desta matéria quase caiu por terra.
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Mas o relato que se segue é meu diário de uma experiência de se evitar ao máximo o contato, a compra, o uso e o descarte de plástico por um mês. Por quê? Para entender o quanto de plástico realmente consumimos em nosso dia a dia e como podemos contornar e viver sem ele em algumas situações. Isso posto, vamos à saga.
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Comecei a dispensar os polímeros sintéticos no dia 15 de março. Admito que no início do experimento pensei que seria bem mais fácil do que realmente foi. Afinal quanto de plástico eu poderia consumir ou, nesse caso, deixar de consumir?
Independente do produto que procurasse, sendo alimento, produto de higiene ou limpeza, ele estava envolto em plástico.
Sempre fui uma pessoa preocupada com o meio ambiente - agradeço muito a minha família por isso - e sempre fiz o possível para diminuir a poluição e o lixo que eu poderia estar gerando no planeta. Então, quando vi a chance de ficar um tempo sem consumir plástico imaginei que seria bem mais simples, pois estaria finalmente me conectando com minha concepção ecológica, mas eu estava bem enganada.
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Nos primeiros dias as coisas até foram fáceis, mas ao fim de uma semana os desafios de verdade começaram a surgir.
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Começou na primeira visita ao mercado. Prateleiras lotadas de embalagens plásticas, de cima a baixo, dominavam todos os corredores. Independente do produto que procurasse, sendo alimento, produto de higiene ou limpeza, ele estava envolto em plástico.
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Como não precisava comprar muitas coisas naquele dia, foi uma ótima primeira experiência para que me preparasse para as próximas compras. Optei por levar somente frutas e legumes, pois esses eu poderia colocar direto nas ecobags sem precisar usar sacolas plásticas.
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De acordo com a Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais) 13,35 milhões de toneladas de plástico foram descartados no Brasil em 2020, o que só deixa mais evidente o tanto de plástico que consumimos sem necessidade.
O capitalismo já deixou de se adaptar ao meio ambiente há muito tempo e com a pandemia isso parece ter se agravado ainda mais, pois todos os produtos relacionados possuem polímeros em alguma parte de sua composição.
Após o dia no mercado tive que fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre como outras pessoas faziam para não consumir tanto plástico e foi aí que uma porta se abriu. Após ler diversos artigos e matérias em três blogs, me deparei com conhecimentos, vivências e visões mais aprofundadas, que me ajudaram a continuar este experimento. Nos blogs da Cristal Muniz (Uma Vida Sem Lixo), Karin Rodrigues (Por Favor Menos Lixo) e Fabi Wan (Fabi Florinda) consegui me identificar com muitas das dificuldades que elas tinham no início e consegui dicas de como evitar o consumo de plástico.
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Uma das primeiras e mais básicas dicas foi recusar a todo custo sacolas plásticas em todos os lugares e substituí-las por ecobags. É difícil tornar isso um hábito, mas com o tempo dá para pegar o jeito. A outra dica que estava presente em todos os blogs era: pensar fora da caixa e ser criativa para encontrar soluções mais ecológicas. Um dos exemplos foi comprar produtos a granel e levar potes de vidro ou saquinhos de pano para guardar os grãos.
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As compras seguintes foram um pouco mais fáceis, pois mesmo que acabasse comprando algo que utilizasse plástico (o que não aconteceu muito), tentei usar o plástico para alguma outra coisa. Geralmente eram potes de plástico, então não era difícil arranjar utilidades para eles.
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Porém, foi bem desafiador o experimento, quando tive que ir à farmácia. Além das sacolas, não tinha tantas outras alternativas para a compra de produtos, pois a maioria vinha em embalagens plásticas. Estava lá para comprar remédio para dor de cabeça e álcool em gel, e infelizmente não parecia existir uma solução que não envolvesse plástico para o segundo produto.
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O capitalismo já deixou de se adaptar ao meio ambiente há muito tempo e com a pandemia isso parece ter se agravado ainda mais, pois todos os produtos relacionados possuem polímeros em alguma parte de sua composição. As embalagens do álcool, das máscaras descartáveis ou de pano vêm todas em plástico, o que me deixou sem opções de compra ecologicamente correta.
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No decorrer do experimento foi notável o quanto que não só a minha vida, porém a de várias outras pessoas é “sustentada” pelo plástico. Do momento em que se acorda até a hora de dormir, inúmeros objetos que empregam polímeros são utilizados, da escova de dentes até canetas e sacolas de lixo.
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Ao final, me tornei bem mais atenta às coisas ao meu redor e principalmente mais consciente do que estava usando ou consumindo, mas não deixou de ser um desafio. Quando parecia que estava pegando o jeito, algum obstáculo aparecia para me provar o contrário e continuou assim pelo resto dos dias.
Do momento em que se acorda até a hora de dormir, inúmeros objetos que empregam polímeros são utilizados, da escova de dentes até canetas e sacolas de lixo.
Acredito que não seja totalmente impossível viver sem o uso do plástico, mas definitivamente não é possível começar isso do nada como foi o meu caso. Para desenvolver um lifestyle desses, é necessário muita pesquisa, dedicação e força de vontade, porque em diversos momentos surgirão desafios que colocarão à prova todo o seu esforço.
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Com o término da experiência ainda pretendo manter os ensinamentos que aprendi para o resto da minha vida. Claro que não será fácil, porém pensando sobre os impactos que minha atitude de tentar não consumir plástico pode ter no futuro me enche de otimismo e determinação para continuar.