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Um risco adormecido
no porto

Em meio à expansão portuária, moradores vivem à beira do perigo trazido por uma substância química pouco conhecida da comunidade próxima às operações de carga e descarga:
o nitrato de amônio. 

Isabela Marangoni, Ludmila Andrade, Narriman Sorbille e Yasmin Braga

Todos os dias Elizete Rosa Amorim segue a mesma rotina. Logo cedo, se prepara para tomar conta da cozinha do seu restaurante, o Bar da Beth, na Avenida Siqueira Campos, no Macuco, a poucos metros da área reservada do Porto de Santos. Ao lado dos três filhos, ela comanda o comércio há quase 25 anos. Dona Beth, como prefere ser chamada, é uma das moradoras e comerciantes do tradicional bairro santista, um dos que mais sente a presença das atividades portuárias e seus inconvenientes.   
 

O  bar tem seis funcionários, entre ajudantes de cozinha e entregadores, e conta com cerca de dez mesas em um pequeno espaço. Os clientes já são conhecidos, todos vizinhos e moradores do bairro, que durante o almoço fogem rapidamente para se deliciar com as refeições caseiras preparadas por Beth, todas servidas nos chamados “pratos feitos”. O restaurante fica a 3,5 km de distância da zona portuária, o que representa uma viagem rápida de cinco minutos de carro.   

Diferentemente da maioria dos moradores, dona Beth sabe bem o risco que é viver ao redor do local onde são descarregados e transportados diferentes produtos tóxicos e inflamáveis. Sem nenhuma orientação das autoridades competentes sobre o que fazer em caso de acidentes, como vazamentos ou até explosões, a comerciante segue acompanhando apenas o que é informado pelos telejornais da região.  

Narriman Sorbille

“Isso é muito prejudicial. Me lembro de um vazamento há alguns anos. Tinha um cheiro fortíssimo. Sei apenas o que sai na imprensa. Ninguém nunca nos instruiu sobre o que fazer nesses casos”

Elizete Rosa Amorim

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Uma das substâncias que traz pavor à dona Beth e a todos que conhecem o funcionamento da zona portuária, tem nome e sobrenome: nitrato de amônio, um composto químico muito utilizado pela indústria, principalmente de fertilizantes. Pela alta concentração de oxigênio e energia contidas na molécula, é um poderoso oxidante e altamente inflamável, utilizado como matéria-prima para a fabricação de explosivos e fertilizantes.

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Sozinho, ele normalmente não explode, mas caso encontre qualquer material orgânico, como óleo diesel, açúcar, farinha, madeira ou querosene, o resultado pode ser catastrófico. Dependendo da quantidade do produto, é possível haver uma explosão com a mesma intensidade da que ocorreu em agosto do ano passado em Beirute, no Líbano, e que provocou a morte de mais de cem pessoas.  Em Santos cerca de 17 milhões de toneladas  por ano são movimentadas por ano, uma quantidade muito acima da estocada em Beirute.  

Além do risco de explosões, quando exposto à temperaturas acima de 210 °C, o nitrato de amônio produz óxido de nitrogênio, altamente tóxico para o ser humano. 

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NÃO AO ARMAZENAMENTO 

 

Na Baixada Santista, o nitrato de amônio não é armazenado, como ocorre em outros portos do mundo, mas é produzido no polo da empresa VLI, em Cubatão, e transportado em navios e caminhões, em um processo de carga e descarga. Segundo Élio Lopes, mestre em Engenharia Urbana e professor da Universidade Santa Cecília, o risco de uma explosão seria ainda maior se houvesse estoque do produto.  

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“A explosão com o nitrato de amônio tem um deslocamento de ar muito grande, que amplia o potencial de destruição quando aquecido. O risco de explodir sempre existe, embora o problema sejam as consequências. Por exemplo, o risco de um avião cair é muito pequeno, mas quando acontecem acidentes aéreos as consequências são enormes, com um número grande de mortes. Com o nitrato de amônio não é diferente. Mesmo com toda a segurança e a probabilidade não sendo alta, se acontecer trará resultados aterradores”, diz o especialista.  

Em casos de incêndio e explosão, o nitrato é altamente solúvel e pode ser contido com água, mas o impacto ainda pode ser grande e o resultado extremamente destrutivo, tanto nas perdas materiais quanto nas possíveis vítimas que estejam próximas. Por isso, o professor reforça que o ambiente ideal para o armazenamento das pilhas de nitrato de amônio é em local fechado, sem pressão atmosférica nenhuma e longe da população. Muito longe.  

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“Sou totalmente contrário à armazenagem de nitrato de amônio em comunidades, ou seja, a distância entre o porto e a área urbana da cidade é muito pequena. Se for armazenado em uma fazenda, longe da população, tudo bem. Precisamos entender que acidentes ocorrem, por mais segurança e experiência que tivermos. E não acontecem sozinhos. São vários fatores que provocam uma catástrofe”. 

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DESINFORMAÇÃO  

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A falta de informação por parte das comunidades próximas do porto de Santos preocupa a ativista ambiental Mari Polachini, integrante da Frente Ambientalista da Baixada Santista. “Em nossos debates pontuamos que, se não houver mobilização da população, não há como resolver esse problema. Por isso, realizamos palestras e reuniões em universidades, escolas e associações de bairro”. 

Apesar de não ser armazenado por aqui, o nitrato de amônio ainda fica um período de tempo ‘guardado’ durante o processo de carga ou descarga. Não se sabe ao certo quanto esse composto permanece próximo da residência da dona Beth, mas a circulação da substância preocupa a ativista. “Na hipótese de um acidente, não existe plano de evacuação, a sociedade civil nem tem conhecimento desse tipo de composto perto de suas casas. Ou seja, nossas vidas estão em risco por insumos que nem são usados aqui”, alerta.  

Abisolo/ Divulgação
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O nitrato de amônio em sua forma de cristal

No combate à desinformação, a Frente Ambientalista busca conscientizar aqueles que vivem próximos do local das operações de carga e descarga do nitrato de amônio. Para permanecer próximo dessas pessoas durante o período de isolamento, a Frente Ambientalista tem atuado nas mídias sociais fortemente, promovendo lives e entrevistas. O projeto também está ativo por meio de panfletagens e uso de carros de som. Apesar disso, moradores como a Dona Beth, ainda não tiveram acesso a essas informações, apenas o que é transmitido na televisão.  

DESENVOLVIMENTO PARA QUEM, AFINAL?

 

Em julho de 2020 foi definido um Plano de Desenvolvimento e Zoneamento Portuário (PDZ) pela Santos Port Autorithy, com o objetivo de promover a expansão sustentável do porto. Entretanto, na área de Outeirinhos, no bairro Macuco, onde é prevista a criação de armazéns de fertilizantes, há residências muito próximas, e até mesmo um terminal de passageiros movimentado.  

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A área, que no século XIX era utilizada como sítio da família de José Bonifácio, atualmente abriga docas e armazéns de produtos considerados nobres pela indústria, como açúcar, milho e arroz. A ideia então com este PDZ, é que os produtos sejam trocados, e que sejam armazenados anualmente quase três milhões de toneladas de fertilizante, com alta possibilidade de explosão.  

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Segundo o diretor da Faculdade de Engenharia da Universidade Santa Cecília, Áureo Pasqualeto Figueiredo, o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento não é algo a ser comemorado por quem vive próximo do local.  

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“Precisamos entender que o porto e a cidade têm que conviver fraternalmente. A cidade precisa do porto gerando empregos, mas o porto não pode esquecer que os trabalhadores moram na cidade. Aí começa o conflito, ambos devem ter uma preocupação em termos de segurança, conforto e viabilidade”

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Áureo Pasqualeto Figueiredo

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Figueiredo detalha o processo de transporte dos fertilizantes para a lavoura, lembrando que, aplicados ao solo, voltam incorporados nos grãos que continuam sendo carregados por toda a zona portuária, no círculo da cadeia de produção.  

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Com o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento a ideia principal, segundo o professor, é que os produtos armazenados na região das docas do Outeirinhos, sejam substituídos pelos fertilizantes agrícolas.  

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“Estão propondo tirar esses terminais que já funcionam com produtos mais nobres e colocar no lugar armazéns de fertilizantes. Só que o problema é que do outro lado da rua moram 50 mil pessoas”, explica

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E a explicação lógica para tamanho receio é bem simples: com três mil toneladas de nitrato de amônio armazenados, a cidade de Beirute foi pelos ares em um acidente trágico. Aqui na região, no local previsto pela SPA, planeja-se o armazenamento de três milhões de toneladas anualmente.  “Qual o sentido de criar uma situação de risco iminente?”, questiona o professor.

 

 

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DESPREPARO DOS TRABALHADORES 

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As empresas portuárias devem apresentar planos de segurança à Defesa Civil de Santos anualmente. Desde 2013, foi criado o programa P2R2 (Prevenção, Preparação e Resposta Rápida) para prevenir e apresentar planos de contingência envolvendo produtos químicos. O trabalho é realizado em conjunto por órgãos como Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, Cetesb, Ibama e governos municipais e estadual.  

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Mas, segundo o Sindicato dos Empregados Terrestres em Transportes Aquaviários e Operadores Portuários do Estado de São Paulo (Settaport), o porto não está totalmente preparado para lidar com um possível acidente envolvendo o nitrato de amônio. Os trabalhadores possuem poucos recursos para lidar com a substância diariamente.  

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Dados da OAB-Santos revelam que o porto santista recebe, em média, 30 mil toneladas do fertilizante em cada navio de transporte. Na prática, isso representa uma quantidade dez vezes maior de nitrato de amônio em comparação ao volume que provocou a explosão no Líbano.  

“Não há uma forma segura ou 100% eficaz para o trabalhador lidar com o nitrato de amônio no Porto de Santos. Os trabalhadores portuários não possuem nenhuma segurança para manusear o produto, ficando expostos a possíveis acidentes”, acredita Chico Nogueira, presidente do Settaport.  Para Nogueira, uma das alternativas é armazenar e transportar o produto em locais isolados da cidade.

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“Não há garantias de que a armazenagem deste produto será totalmente segura, porém, se o nitrato for conservado em ambientes afastados, em caso de possível explosão, é mais fácil controlar o incêndio”

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Chico Nogueira

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Nogueira ainda afirma que o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ) não está preparado para um possível acidente contendo a carga. Por estar muito perto da cidade, é impossível alegar que a população e os trabalhadores estarão seguros.  

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“Até 2040 teremos um acúmulo de 12 milhões de toneladas de nitrato de amônio no porto de Santos. É irreal afirmar que é possível armazenar o produto sem acontecer algum tipo de imprevisto’’, alerta.  

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O sindicalista explica que existem formas de prevenção para evitar um possível acidente. Os trabalhadores portuários são instruídos superficialmente a armazenar de forma correta e em local isolado o nitrato, além de não utilizarem nenhum objeto ou instrumento que provoque faíscas.  

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“O risco sempre será do tamanho da proporção que está sendo abastecido. O que pode ser feito é não armazenar tanto produto no mesmo local”, diz.  

Perigo desconhecido é um mini documentário realizado pelos estudantes do 4º ano de Jornalismo que explica um pouco sobre o nitrato de amônio, o mesmo produto responsável pela explosão que devastou Beirute em 2020. Assista e descubra um pouco mais sobre os seus usos, perigos e os planos da cidade de Santos para lidar com esse material.

O QUE DIZ A AUTORIDADE DO PORTO? 

 

Em resposta aos questionamentos acerca da movimentação de nitrato de amônio, a Santos Port Authority (SPA), que administra o porto de Santos, informa por meio de nota oficial  que o armazenamento do produto ocorre no Terminal Marítimo do Guarujá (Termag), localizado na margem esquerda do porto (Guarujá).  

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O produto armazenado temporariamente nesse terminal é o nitrato de amônio Classe 5, destinado exclusivamente para o uso agrícola, como matéria-prima de fertilizante para as plantações.

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A SPA garante que o produto é submetido a monitoramento rigoroso de temperatura e umidade e misturado a calcário para dar maior estabilidade. Não é estocado por longos períodos, sendo basicamente uma operação de transbordo direto dos navios para caminhões. O órgão frisa que o nitrato de amônio Classe 5, por si só, não é inflamável ou explosivo. É necessário haver uma combinação de vários fatores de risco para causar um eventual acidente (ex: confinamento, existência de produtos inflamáveis no mesmo local, alta temperatura, entre outros). A SPA ressalta que a segurança é prioridade no porto de Santos. Assim, todos os procedimentos operacionais são seguidos criteriosamente pelos responsáveis pelas operações e acompanhados por intensa fiscalização, propiciando total segurança à população.  

 Divulgação
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vista aérea do Porto de santos onde podemos ver a área do TERMAG localizada Na ilha de Santo amaro, margem GUARUJÁ

Para o armazenamento dessa carga, o Termag conta com autorização do órgão licenciador, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), e segue orientações técnicas sobre armazenamento estabelecidas pelo Exército. A SPA garante que realiza vistorias técnicas regulares e possui planos de gerenciamento de risco e de ação de emergência, aprovados no âmbito de sua licença de operação.

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Na margem direita do porto não há armazenamento do nitrato de amônio Classe 5 e, quando há operação desse produto, ela é feita com descarga direta. Os operadores que atuam na margem direita realizam suas operações de descarga utilizando, obrigatoriamente, funil ecológico e kit de atendimento a emergências, sempre acompanhados por equipes de fiscalização de Operações e de Segurança do Trabalho/Meio Ambiente da SPA.  

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A SPA reforça que todos os terminais que operam com produtos perigosos, sejam a granel ou conteinerizados, possuem, no âmbito de suas licenças de operação, Estudos de Análise de Risco (EAR), Plano de Gerenciamento de Risco (PGR) e Plano de Ação de Emergências (PAE). 

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INSEGURANÇA COM O FUTURO  

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A resposta da autoridade portuária não é capaz de tranquilizar Dona Beth. Ela sabe que se o novo Plano de Zoneamento for implantado nos próximos meses, ela vai pensar em abandonar a vida que construiu por duas décadas como moradora e comerciante.  

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“As pessoas de bom senso com certeza iriam sair daqui. Ninguém ia querer ficar morando dentro do perigo ou arriscar de qualquer hora acontecer um acidente. Melhor ir para outro lugar ou até mesmo outra cidade, porque isso está se tornando uma bomba”, finaliza. 

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