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tartaruga-de-couro

uma jornada pelo mar

O que levou a gigante tartaruga-de-couro a desovar na Baixada Santista, a mais de mil quilômetros do local onde naturalmente deposita os ovos? Conheça o processo de migração dos animais marinhos e as adversidades que ele pode trazer  

Ágata Luz, Allan Veríssimo, Luana Chaves e Peter Nardotto

A velocidade do nado chega a 35 km/h. O movimento é determinado e tem ritmo forte, vindo de um corpo de 1,77m de comprimento, com mais de 300 quilos.


Durante o processo de migração pelo oceano Atlântico, enfrenta obstáculos: luta por alimento, fuga de atividades pesqueiras, diferentes temperaturas, correntes e massas d’água. E ainda tem que encarar as dificuldades causadas pela ação humana. A poluição marítima impacta sua saúde, condição física e sobrevivência. Apesar de ser uma espécie ameaçada de extinção, ela resiste.

 

Após encarar tantos desafios, a gigante tartaruga-de-couro (Dermochelys coriácea), enfim, chega à costa. Em uma praia diferente de seu habitat natural, ela faz a desova: a mais de mil quilômetros de distância do litoral norte do Espírito Santo, onde naturalmente deposita seus ovos.  

Divulgação/Instituto Biopesca
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Primeira desova aconteceu na Praia do Suarão e foi monitorada por profissionais.

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A inédita aparição na praia do Suarão, em Itanhaém, no litoral sul de São Paulo, chama a atenção de diversos profissionais que se reúnem em uma força-tarefa para monitorar o ninho, onde cerca de 100 ovos foram depositados.

 
Em plena temporada de verão, o episódio que aconteceu em uma sexta-feira (19 de fevereiro de 2021) se repetiu no mesmo município após exatamente duas semanas, no dia 5 de março, na praia do Satélite. O animal ainda retornou 12 dias depois e depositou mais ovos na praia do Centro. 


Os três locais de postura foram monitorados pelo Instituto Biopesca e pela equipe que executa o Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos (PMP-BS). A situação atípica levanta diversas dúvidas até para os especialistas: “qual a origem do animal?”, “como os ovos irão eclodir?”. E a principal: “qual a razão do depósito dos ovos em São Paulo?”. As perguntas continuam sem resposta. O que se sabe é que a tartaruga permanece em nosso litoral, pois cada movimento do quelônio gigante é registrado e monitorado pela equipe do PMP-BS desde o dia 6 de fevereiro, quando o animal foi observado em Praia Grande.

 
“Conseguimos visualizar e acompanhar a primeira desova em Itanhaém, quando fizemos a marcação com as anilhas para monitorá-la. Ela realizou a postura em um lugar escuro e tranquilo, o que possibilitou a ida para a areia”, explica a médica veterinária do Instituto Biopesca, Vanessa Ribeiro. 


A segunda desova também foi monitorada, mas na última só foi possível seguir os rastros até o ninho. “Este animal demora cerca de 20 anos para se desenvolver e ficar maduro para desovar. Não sabemos a idade exata, mas deve ter entre 20 e 30 anos”, destaca a profissional. 


A veterinária explica que o local comum de postura desta espécie é a praia da Regência, no Espírito Santo. Mas neste ano, há outros casos de desova da tartaruga-de-couro em pontos distantes do seu habitat, como aponta a bióloga especialista em conservação marinha e ecologia, Camila Domit: “Neste ano, aconteceu no Rio Grande do Sul, Paraná e agora em São Paulo, em Itanhaém”.

“A desova dessa espécie no Brasil só é comum na região norte do Espírito Santo e existe uma discussão sobre a postura na região do Piauí como outra área aparentemente contínua de desova. Mas em todas as demais regiões, são ocorrências oportunísticas”

Camila Domit

ACIDENTE DE PERCURSO 
 

No Paraná, os ninhos foram abertos e os ovos não estavam fecundados. Isso faz com que a bióloga levante a hipótese de que as desovas foram acidentais, ou seja, o momento da desova aconteceu enquanto as tartarugas buscavam novas áreas ou estavam em deslocamento para uma região reprodutiva, onde encontram os machos que fecundam esses ovos. “Mas chegou o momento de desovar e a fisiologia desses animais cobra esse momento”, diz Camila. 


A especialista explica que as tartarugas tendem a se concentrar próximas às áreas reprodutivas no período migratório, o que potencializa o encontro das fêmeas com os machos. Porém, se um animal sozinho chega em alguma área e desova, dificilmente teve contato com outros indivíduos da mesma espécie para que os ovos fossem fecundados.

 

Camila Domit também não descarta a possibilidade de ser um fato fisiológico, ou seja, durante o deslocamento, os animais encontraram obstáculos e não conseguiram chegar até o local de desova: “Pode ser por efeitos oceanográficos, climáticos ou mesmo antrópicos como por exemplo, ser capturada por uma rede de pesca. O animal pode não ter encontrado alimento suficiente e feito um processo de migração mais lento, não conseguindo chegar nas áreas comuns de reprodução”.

“Infelizmente a gente acredita que se há um processo evolutivo de escolha de nova áreas de desovas, essas fêmeas ainda estão muito sozinhas nestes locais”

Camila Domit

 

 

 

 

 

 

 

 


Com cerca de 6,5 centímetros cada um, os ovos foram analisados em um laboratório pela equipe do Instituto Biopesca e receberam a designação “gorados", ou seja, não foram fecundados e a maioria estava em decomposição. 


No dia 25 de maio, porém, os outros dois ninhos de Itanhaém foram abertos. No período da manhã, a equipe do Instituto interviu no local de postura na Praia do Satélite, onde foram localizados 121 ovos, que também estavam em decomposição.


Segundo o Instituto, a interferência aconteceu por conta dos ovos do primeiro ninho estarem em decomposição. No mesmo dia, mas no período noturno, o ninho da Praia do Centro foi

aberto e mais de 100 ovos – também “gorados” - foram localizados, pois a maré invadiu o local, removeu grande parte da areia que recobria o local e destruiu a estrutura de proteção que havia no entorno. Os fatos podem ter relação com a temperatura do local da desova, já que a região é mais fria do que onde a espécie costuma colocar os ovos. 

Divulgação/Instituto Biopesca
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Ovos 'gorados' foram analisados em laboratório.

Em Itanhaém, o primeiro ninho da tartaruga foi aberto no dia 8 de maio. Porém, os ovos da Praia do Suarão não estavam fecundados. Segundo o Instituto Biopesca, os 103 ovos do primeiro ninho foram recolhidos 79 dias após a desova, pois a maré alta - ocasionada por uma ressaca - removeu a areia e deslocou os ovos. 

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Divulgação/Instituto Biopesca
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Ovos de cerca de 6,5 centímetros foram retirados dos ninhos pela equipe do Instituto Biopesca, mas já estavam em decomposição. 

 

HIPÓTESES


A especialista explica ainda que a mudança de rota da tartaruga pode ter relação com a origem do animal e há dúvidas se as tartarugas que apareceram em regiões inéditas são do mesmo estoque genético do Espírito Santo. Segundo Camila, é possível que sejam animais originários da costa da África: “Enquanto não temos o resultado genético, sequer podemos saber se pertenciam à população brasileira e só não chegaram ao Espírito Santo ou se pertenciam à população africana, vieram se alimentar e não conseguiram voltar”.

 
A bióloga relembra registros históricos em jornais no Paraná sobre ninhos de tartarugas-de-couro em 1987 e 1994: “Os animais da espécie que apareceram em locais atípicos podem ser filhos destes. Então é tudo bastante obscuro, temos muitas dúvidas científicas, muitos estudos precisam ser feitos e informações precisam ser coletadas para que possamos entender para onde essas tartarugas estão indo, quem são elas, a que população pertencem e se estão buscando novas áreas de reprodução”.

 

A mudança de rota da tartaruga-de-couro para depositar os ovos pode ser um reflexo da migração marinha. O biólogo Luciano Mizael explica sobre os desvios e consequências que podem acontecer durante este processo. 

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Já a veterinária Vanessa Ribeiro acredita que a “aparição extremamente atípica” das tartarugas pode ter relação com a poluição dos mares e a atividade pesqueira: “Há muitas ocorrências de animais com contaminação crônica”. 

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“É importante lembrar que a tartaruga-de-couro está na lista de espécies criticamente ameaçadas no Brasil e ameaçadas de extinção mundialmente”, destaca a especialista Camila Domit.

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A MIGRAÇÃO DE ANIMAIS MARINHOS

Devido à extensa faixa de areia no litoral santista, a região faz parte da rota migratória de muitos animais. Apenas no período de 1° de janeiro a 7 de abril deste ano, o Instituto Biopesca foi acionado para o resgate de 155 animais marinhos. Destes, 125 estavam mortos e 30 vivos. “De forma geral, a causa da morte pode estar relacionada às ações humanas, como o descarte incorreto de lixo, poluição marinha - que causa doenças – e a captura pela pesca”, esclarece Vanessa.

 
O biólogo marinho, professor em algumas unidades escolares e criador de um blog com conteúdos de biologia, Luciano Mizael, diz que a migração é uma das características evolutivas mais importantes dentro das espécies: “Porque elas permitem que organismos possam se deslocar pelo globo em busca de melhores condições de alimentação, reprodução e cuidado com a prole, garantindo maior chance de sobrevivência”. 


De acordo com o biólogo, entre os animais marinhos que visitam o litoral de São Paulo, estão aves, como pinguins-de-Magalhães, cetáceos, como as baleias, franca, minke, o boto-cinza, toninha, os  pinípedes, como lobo-marinho-sul-americano e por fim, os quelônios, como tartaruga-verde, tartaruga-oliva, tartaruga-cabeçuda e a tartaruga-de-couro. 


A migração das espécies pode resultar na morte de muitos dos animais, conforme explica o biólogo: “Algumas espécies, como os pinguins e os lobos-marinhos, muitas vezes chegam às praias brasileiras com o intuito de descansar de suas longas viagens. Porém, essas espécies podem ser apanhadas acidentalmente por redes e armadilhas de pesca ou feridas por motores de embarcações”. 


Mais alguns fatores que aumentam as estatísticas de morte: a ingestão de lixo e a interferência nas praias. A iluminação, por exemplo, pode prejudicar principalmente o retorno ao mar de filhotes de tartarugas recém-eclodidos. 

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Pinguim é um dos animais que o Instituto Bipesca resgata e trata no litoral de São Paulo.

Além disso, Mizael explica que os cetáceos não costumam realizar pausas para alimentação durante a migração, mas o encalhe de grandes mamíferos está relacionado às atividades portuárias, tráfego de embarcações, efeitos de perfuração e exploração de sondas marítimas, bem como às operações de prospecção de petróleo. “Essas atividades humanas geram uma grande perturbação e uma elevada interferência de ruídos, que de certa maneira, dificultam o processo migratório dos grandes mamíferos”, diz o biólogo. 


Luciano Mizael ainda ressalta que cada organismo apresenta um papel e uma influência no meio. Desta forma, as mortes e encalhes observados ao longo da costa brasileira geram não apenas a redução nos números de espécies, mas também uma elevada interferência nos diversos níveis tróficos ou alimentares, o que compromete os estoques marinhos.

Divulgação/Instituto Biopesca
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