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Amarguras da quarentena: setor alimentício caminha com restrições

Atualizado: 23 de jul. de 2020

Domingo, oito e quarenta e sete da manhã. Na rua pacata, apenas dois sons: os pássaros nos topos das árvores e as buzinas que indicam os motoboys chegando, com intervalos de poucos minutos, em frente a quase todas as casas.


Em qualquer outra época, os vizinhos passariam pelo menos um quarto de hora comentando sobre essa movimentação e buscando os porquês para tantas motos reunidas tão cedo em um bairro residencial. A senhorinha que mora na esquina com a Avenida do Trabalhador certamente estaria voltando da padaria com suas típicas duas médias e a moça do 406 aproveitaria a deixa para entregar um pedaço do bolo que fez na tarde de sábado.




Agora, em meio à pandemia de covid-19, cada um apenas pega sua encomenda — todos munidos com suas máscaras e, certamente, higienizando mãos, sapatos e embalagens assim que as portas são fechadas. O cumprimento mais longo é um aceno distante para quem está na calçada da frente.


Mais alguns minutos, ouvidos atentos e, à porta do 402, chega a entrega da Julipan — que poderia ser apenas mais uma padaria praiagrandense, mas não é. Localizada entre as ruas do Quietude e normalmente frequentada somente por moradores do bairro, a padaria modesta, com seus pães que chegam quentinhos e antes mesmo do prazo informado pelo iFood, virou parte do dia a dia de pessoas de todos os cantos da cidade em meio à quarentena. A indicação veio de uma blogueira local e, desde então, passou a ser a queridinha de quem não abre mão de um sonho de doce de leite, acompanhado pelo pão de queijo com gostinho de infância, no café da manhã do final de semana.


“Procuramos fazer tudo com muito carinho”, é o que diz Julio Siqueira, um dos responsáveis pelo local. E ele nem precisaria dizer: nas últimas semanas, a equipe cedeu pães para quem não pode comprá-los, mesmo reconhecendo que a crise também afetou seu segmento. Além disso, a panificadora também participou de atos de solidariedade em parceria com outros empreendedores e idealizou uma ação na qual os clientes, sem que precisem sair de casa, podem colaborar com a doação dos pãezinhos para pessoas em situações de vulnerabilidade.


Apesar de ser adepta do delivery desde antes da pandemia, a padaria faz parte dos estabelecimentos que passaram a receber mais pedidos online e que conquistou novos clientes durante esse período. Segundo dados da Agência Corebiz, o faturamento por meio das entregas por aplicativos aumentou 77% nas empresas do ramo alimentício, um dos poucos setores que continuam funcionando — ainda que com restrições — ao longo da crise gerada pelo coronavírus.


O doce aroma do sucesso não se destina apenas à Julipan: na hora do almoço, ele também chega até a cozinha do Divino Restaurante, que faz a entrega de marmitas em Santos. Os pratos, que vão desde sopas até cardápios especiais para datas comemorativas, carregam agora o sabor de um novo tempero: a esperança. “É difícil ter expectativa em um cenário de incertezas, mas tenho confiança de que estamos construindo algo legal", conta Marcelly Barbosa. A proprietária viu o isolamento social como uma forma de implementar diversas mudanças em seu negócio. Uma das principais ideias é, após o fim da pandemia, deixar de lado o plano de abrir o salão do restaurante e, assim, continuar trabalhando apenas no sistema delivery, mesmo com o aumento da concorrência que esse tipo de serviço passou a ter.


Porém, situações como as de Julio e Marcelly não são as mais comuns em terras caiçaras. A assessoria de imprensa do SINTHORESS (Sindicato dos Trabalhadores em Comércio Hoteleiro, Bares, Restaurantes e Similares da Baixada Santista e do Vale do Ribeira) não nega: somente no setor, aproximadamente 30 mil pessoas ficaram desempregadas neste período.


Algumas delas, na vida pré-quarentena, trabalhavam em uma das principais avenidas da cidade onde a extensão de praia faz jus ao nome. Cerca de 70 dias após a chegada do inimigo invisível, há poucas portas abertas na Costa e Silva, em Praia Grande, e muitas dúvidas nas casas de quem perdeu o emprego ou teve o contrato de trabalho suspenso. Mesmo após a autorização para que determinados comércios voltassem a funcionar, o baixo — e, em alguns casos, inexistente — fluxo de clientes fez o lucro despencar.


Eliana Santos, gerente de uma sorveteria do bairro mais movimentado da cidade, percebeu essa queda em muitos aspectos: na carga horária, no salário e na quantidade de pessoas circulando pela região. “A sensação é de estar entre a cruz e a espada. Por um lado, a melhor coisa que pode acontecer é as pessoas respeitarem o isolamento. Ao mesmo tempo, a gente precisa continuar funcionando, e isso depende dos clientes estarem na rua”, afirma. Em determinado momento da quarentena, o chefe a encarregou de decidir quem ficaria trabalhando e quem entraria para as estatísticas do desemprego.


Dia a dia, a situação parece pior para outras empresas que, por questões de logística ou de custos, também não conseguiram se adaptar ao delivery ou precisaram reduzir o quadro de funcionários. Exatamente como um sorvete numa tarde de verão, a esperança derrete e, gota a gota, escorre entre os dedos de muitos empreendedores do setor alimentício.

Inclusive, nos últimos dois meses, estabelecimentos de pequeno porte encerraram suas atividades por falta de verba, de acordo com a assessoria do SINTHORESS. Com isso, mais do que cardápios, eventos gastronômicos e degustações, também foi o fim para um mundo de oportunidades que agora parecem muito distantes da realidade, até mesmo para o cenário pós-pandemia. Alguns, mesmo sem lucro, tentam sustentar seus estabelecimentos para que não precisem recomeçar do zero quando vier a estabilidade na economia — e na vida — dos brasileiros.


Entre os locais que seguem entregando pitadas de esperança em refeições quentinhas sob o frio do outono santista, está o restaurante Dona Angola, que faz parte daqueles que não tinham caixa disponível para esse período. Pertinho do coração do Gonzaga, o ambiente, antes repleto de referências rústicas e pratos alternativos que exalam o calor humano da cultura brasileira, agora sente o vazio das mesas desocupadas. Gabriel Cicone, um dos sócios do local, lamenta por precisar reduzir os salários de seus colaboradores, mas garante que foi necessário para continuar em funcionamento. “Foi preciso dividir prejuízos”, diz o empresário, que optou pela redução de pagamentos e da jornada de trabalho.


Para ele, a situação trouxe uma série de prejuízos, como cortes de equipe e a necessidade de utilizar os lucros das vendas feitas por online para fazer o pagamento de alguns dos custos da empresa. Mas, otimista, Gabriel busca enxergar o lado positivo do momento. “Avançamos, em operação, o que levaríamos cinco anos para avançar”, afirma, admitindo que questões que precisavam ser ajustadas, como marketing e gerenciamento, foram feitas em meio à crise.


De fato, a pandemia chegou ao setor alimentício como pimenta em excesso: afetando o paladar em todas as refeições. Sem fórmulas mágicas e se adaptando como podem, os empresários do ramo seguem transformando limões em limonada, mesmo em tempos de lucros congelados. Assim, na amargura trazida pela incerteza quanto aos próximos meses e diante da acidez do presente, torcem para que o futuro traga de volta a doçura de um café — que, no fim das contas, sempre tem o poder de aquecer o coração.




 

Por Eduardo Russo | Julia Nascimento | Lillian Cruz | Rafaélla Mantovani

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