"Mamãe, quando esse vírus vai embora?"
- viralunisanta
- 24 de abr. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 30 de abr. de 2020
Em uma rotina que reúne os cuidados com o filho e os atendimentos em um hospital público, a médica Michele Sevilhano relata os desafios diários da luta contra o coronavírus

Diretamente do epicentro de covid-19 em terras brasileiras, Michele Sevilhano enfrenta duas batalhas: tratar pacientes contaminados pelo vírus e, ao mesmo tempo, manter seus pais e Guilherme, seu filho de 3 anos e 7 meses, longe do risco de serem infectados. Em meio aos atendimentos na emergência de um hospital público na região central de São Paulo, ela nos conta, por telefone, como é lidar diretamente com um inimigo invisível. Razão e sensibilidade. Talvez, para muitas pessoas, essas duas palavras definam apenas o título de um clássico da literatura inglesa. Mas, por aqui, elas formam o paradoxo dos últimos dias. Ceder à emoção de ser envolvida pelos bracinhos pequenos do meu filho após um dia de trabalho se tornou algo fora de cogitação. É preciso ser racional e, por isso, chegar em casa é sinônimo de seguir um ritual que se tornou essencial para a nossa sobrevivência e a de quem amamos.
Porta aberta, sapatos tirados, roupas na máquina, banho tomado. E ele espera, paciente até demais para seus pouco menos de quatro anos de idade.
Em qualquer outro momento, isso seria exagero. Agora, no entanto, todo cuidado ainda é pouco, e não parei de pensar nisso do caminho do hospital até em casa. O cansaço predomina e, vez ou outra, admito que a vontade é de quebrar essa rotina imposta por algo que ainda não temos controle. Porém, eu não posso. Por mim, por ele, pela babá – que precisou trocar o transporte público pelos carros de aplicativo, evitando ao máximo qualquer aglomeração ou contato com outras pessoas – e por todos. O inimigo é invisível e, no plantão nosso de cada dia, vejo o estrago que ele pode causar. - Mamãe, quando esse vírus vai embora? – meu filho pergunta, ansioso por uma resposta que o permita voltar à rotina de uma criança normal de sua idade. É bem frustrante não ter uma resposta para a pergunta dele. Entre os casos suspeitos que chegam todos os dias à emergência, as confirmações que aumentam diariamente e os pacientes que precisam ser encaminhados à UTI, talvez isso seja o pior de tudo: não saber se a guerra está acabando ou se ainda está longe do fim. Para o meu filho, já são mais de dez dias sem ver os avós e as ondas do litoral paulista. As visitas ao apartamento dos meus pais, na divisa entre Santos e São Vicente, foram definitivamente cortadas desde o início da quarentena. Por enquanto, são dez dias de isolamento.
Dez dias em que as brincadeiras da infância são intercaladas com doses de álcool em gel nas mãos e pitadas de dúvidas sobre o que está acontecendo, não só no mundinho limitado pelas paredes de casa, mas, também, no que ele vê pelos vidros da janela. Para mim, a situação é um pouco mais complicada. Sou médica pediatra e plantonista de emergências. O universo de cores e sons da ala infantil segue tranquilo – ainda com a preocupação diante de uma febre, tosse ou dor de garganta, as recomendações são respeitadas e as crianças só são trazidas em situações de urgência. Só não se pode dizer o mesmo sobre a clínica médica. Trabalho em um hospital na capital de São Paulo – estado onde há o maior número de infecções por coronavírus confirmadas no Brasil – e a movimentação é maior. Entre os pacientes que chegam, já tivemos casos diagnosticados, seguidos de internações e transferências para a UTI. E o resultado é aquele que todo médico trabalha para evitar: mortes por covid-19.
Em geral, os pacientes estão em pânico – e quem não está é porque ainda não entendeu a gravidade. Até o momento, são mais de dois mil casos confirmados na capital paulistana, o que faz do nosso estado o epicentro de coronavírus no país. Ainda assim, os mais velhos insistem em sair, seja por teimosia ou busca por liberdade. Independentemente do motivo, o resultado tende a ser dos piores.
Como médica, minha função não é somente solicitar exames, avaliar sintomas, prescrever medicação e encaminhar para outro setor; acalmar e orientar também fazem parte das minhas atribuições.
Além de todas as orientações de prevenção e cuidado, é preciso lidar com o emocional e, por isso, há casos em que tratamento psicológico e medicamentação específica se tornam essenciais. Enquanto isso, quem está do lado de cá precisa manter a saúde física e mental ainda melhor do que qualquer pessoa que não esteja aqui, nos bastidores – ou, olhando por outro ângulo, no protagonismo – de um hospital. Pena que médico não é Super-Homem, não tem poderes mágicos e não está isento de ser vítima do coronavírus. Semana passada, um colega pediatra foi a prova viva de que nosso jaleco não é a capa do Super-Homem e foi afastado após seu teste resultar positivo. Em prol da saúde, a regra é clara: qualquer médico com sintomas parecidos aos de covid-19 faz o teste e é afastado imediatamente até o resultado do exame. Se o resultado for positivo, é feita a quarentena por duas semanas completas. Em tese, é o que também deveria ser feito com as outras pessoas. Pena que não há testes o bastante para isso... Entre um atendimento e outro dentro de um hospital público, onde nem sempre a estrutura dá conta das necessidades dos pacientes, o medo tenta ganhar espaço. Meu maior receio nessa situação, e dos profissionais de saúde em geral, é não apenas contaminar a si mesmo, mas, principalmente, lidar com o risco de o levarmos para dentro das nossas casas. É preciso evitar o que parece inevitável, e é isso que me dá forças para seguir firme. Racionalizar e seguir a recomendação de isolamento social é essencial agora. Não é tarefa fácil, principalmente para a população idosa – exatamente aquela que mais precisa se proteger. Mas, entre o fácil e o correto, o melhor é seguir o caminho que não coloca a própria saúde, e a de todos ao redor, em risco. Com mais de sessenta anos, meus pais encontram em casa todas as distrações que precisam e na minha irmã o apoio para que as compras sejam feitas e deixadas na garagem do prédio, para que possam pegá-las assim que ela vai embora.
Quem diria que um dia a maior demonstração de afeto seria evitar contato físico?
Admito que algo assim nunca passou pela minha mente, e não é por acaso que a emoção se faz presente em uma chamada de vídeo e na saudade que não sabemos quando vai passar, na necessidade de evitar um abraço do filho ao chegar do trabalho e de cuidar do outro com o mesmo cuidado que temos com nós mesmos. Mas, até que a covid-19 deixe de ser a razão dos nossos maiores pesadelos, o que nos resta é agradecer pela tecnologia, que nos permite facilitar a rotina – ainda que meus poucos momentos para interagir com as pessoas que amo sejam entre uma consulta e outra –, e manter a prevenção em primeiro lugar. Após uma noite de sono e pronta para mais um dia, me despeço da minha vida e vou salvar outras. Jaleco, máscara, todos os equipamentos de proteção individual possíveis, álcool em gel e pensamento positivo: talvez eu não os tenha valorizado tanto nos seis anos de faculdade, e hoje são meus maiores aliados na prevenção contra esse vírus. Entre todas as certezas da vida, a única que tenho é que, em algum momento, isso tudo vai passar.

por Lillian Cruz || Eduardo Russo || Julia Nascimento || Rafaélla Mantovani Fotos: Michele Sevilhano (arquivo pessoal)
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