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"Mamãe, quando esse vírus vai embora?"

Atualizado: 30 de abr. de 2020

Em uma rotina que reúne os cuidados com o filho e os atendimentos em um hospital público, a médica Michele Sevilhano relata os desafios diários da luta contra o coronavírus 

Diretamente do epicentro de covid-19 em terras brasileiras, Michele Sevilhano enfrenta duas batalhas: tratar pacientes contaminados pelo vírus e, ao mesmo tempo, manter seus pais e Guilherme, seu filho de 3 anos e 7 meses, longe do risco de serem infectados. Em meio aos atendimentos na emergência de um hospital público na região central de São Paulo, ela nos conta, por telefone, como é lidar diretamente com um inimigo invisível.  Razão e sensibilidade. Talvez, para muitas pessoas, essas duas palavras definam apenas o título de um clássico da literatura inglesa. Mas, por aqui, elas formam o paradoxo dos últimos dias. Ceder à emoção de ser envolvida pelos bracinhos pequenos do meu filho após um dia de trabalho se tornou algo fora de cogitação. É preciso ser racional e, por isso, chegar em casa é sinônimo de seguir um ritual que se tornou essencial para a nossa sobrevivência e a de quem amamos.


Porta aberta, sapatos tirados, roupas na máquina, banho tomado. E ele espera, paciente até demais para seus pouco menos de quatro anos de idade. 

Em qualquer outro momento, isso seria exagero. Agora, no entanto, todo cuidado ainda é pouco, e não parei de pensar nisso do caminho do hospital até em casa. O cansaço predomina e, vez ou outra, admito que a vontade é de quebrar essa rotina imposta por algo que ainda não temos controle. Porém, eu não posso. Por mim, por ele, pela babá – que precisou trocar o transporte público pelos carros de aplicativo, evitando ao máximo qualquer aglomeração ou contato com outras pessoas – e por todos. O inimigo é invisível e, no plantão nosso de cada dia, vejo o estrago que ele pode causar.  - Mamãe, quando esse vírus vai embora? – meu filho pergunta, ansioso por uma resposta que o permita voltar à rotina de uma criança normal de sua idade.  É bem frustrante não ter uma resposta para a pergunta dele. Entre os casos suspeitos que chegam todos os dias à emergência, as confirmações que aumentam diariamente e os pacientes que precisam ser encaminhados à UTI, talvez isso seja o pior de tudo: não saber se a guerra está acabando ou se ainda está longe do fim.  Para o meu filho, já são mais de dez dias sem ver os avós e as ondas do litoral paulista. As visitas ao apartamento dos meus pais, na divisa entre Santos e São Vicente, foram definitivamente cortadas desde o início da quarentena. Por enquanto, são dez dias de isolamento.


Dez dias em que as brincadeiras da infância são intercaladas com doses de álcool em gel nas mãos e pitadas de dúvidas sobre o que está acontecendo, não só no mundinho limitado pelas paredes de casa, mas, também, no que ele vê pelos vidros da janela.  Para mim, a situação é um pouco mais complicada. Sou médica pediatra e plantonista de emergências. O universo de cores e sons da ala infantil segue tranquilo – ainda com a preocupação diante de uma febre, tosse ou dor de garganta, as recomendações são respeitadas e as crianças só são trazidas em situações de urgência. Só não se pode dizer o mesmo sobre a clínica médica.  Trabalho em um hospital na capital de São Paulo – estado onde há o maior número de infecções por coronavírus confirmadas no Brasil – e a movimentação é maior. Entre os pacientes que chegam, já tivemos casos diagnosticados, seguidos de internações e transferências para a UTI. E o resultado é aquele que todo médico trabalha para evitar: mortes por covid-19. 

Em geral, os pacientes estão em pânico – e quem não está é porque ainda não entendeu a gravidade. Até o momento, são mais de dois mil casos confirmados na capital paulistana, o que faz do nosso estado o epicentro de coronavírus no país. Ainda assim, os mais velhos insistem em sair, seja por teimosia ou busca por liberdade. Independentemente do motivo, o resultado tende a ser dos piores. 

Como médica, minha função não é somente solicitar exames, avaliar sintomas, prescrever medicação e encaminhar para outro setor; acalmar e orientar também fazem parte das minhas atribuições.

Além de todas as orientações de prevenção e cuidado, é preciso lidar com o emocional e, por isso, há casos em que tratamento psicológico e medicamentação específica se tornam essenciais.  Enquanto isso, quem está do lado de cá precisa manter a saúde física e mental ainda melhor do que qualquer pessoa que não esteja aqui, nos bastidores – ou, olhando por outro ângulo, no protagonismo – de um hospital. Pena que médico não é Super-Homem, não tem poderes mágicos e não está isento de ser vítima do coronavírus.  Semana passada, um colega pediatra foi a prova viva de que nosso jaleco não é a capa do Super-Homem e foi afastado após seu teste resultar positivo. Em prol da saúde, a regra é clara: qualquer médico com sintomas parecidos aos de covid-19 faz o teste e é afastado imediatamente até o resultado do exame. Se o resultado for positivo, é feita a quarentena por duas semanas completas. Em tese, é o que também deveria ser feito com as outras pessoas. Pena que não há testes o bastante para isso...  Entre um atendimento e outro dentro de um hospital público, onde nem sempre a estrutura dá conta das necessidades dos pacientes, o medo tenta ganhar espaço. Meu maior receio nessa situação, e dos profissionais de saúde em geral, é não apenas contaminar a si mesmo, mas, principalmente, lidar com o risco de o levarmos para dentro das nossas casas. É preciso evitar o que parece inevitável, e é isso que me dá forças para seguir firme.  Racionalizar e seguir a recomendação de isolamento social é essencial agora. Não é tarefa fácil, principalmente para a população idosa – exatamente aquela que mais precisa se proteger. Mas, entre o fácil e o correto, o melhor é seguir o caminho que não coloca a própria saúde, e a de todos ao redor, em risco.  Com mais de sessenta anos, meus pais encontram em casa todas as distrações que precisam e na minha irmã o apoio para que as compras sejam feitas e deixadas na garagem do prédio, para que possam pegá-las assim que ela vai embora.




Quem diria que um dia a maior demonstração de afeto seria evitar contato físico? 

​Admito que algo assim nunca passou pela minha mente, e não é por acaso que a emoção se faz presente em uma chamada de vídeo e na saudade que não sabemos quando vai passar, na necessidade de evitar um abraço do filho ao chegar do trabalho e de cuidar do outro com o mesmo cuidado que temos com nós mesmos. Mas, até que a covid-19 deixe de ser a razão dos nossos maiores pesadelos, o que nos resta é agradecer pela tecnologia, que nos permite facilitar a rotina – ainda que meus poucos momentos para interagir com as pessoas que amo sejam entre uma consulta e outra –, e manter a prevenção em primeiro lugar.  Após uma noite de sono e pronta para mais um dia, me despeço da minha vida e vou salvar outras. Jaleco, máscara, todos os equipamentos de proteção individual possíveis, álcool em gel e pensamento positivo: talvez eu não os tenha valorizado tanto nos seis anos de faculdade, e hoje são meus maiores aliados na prevenção contra esse vírus. Entre todas as certezas da vida, a única que tenho é que, em algum momento, isso tudo vai passar. 




 

por Lillian Cruz || Eduardo Russo || Julia Nascimento || Rafaélla Mantovani Fotos: Michele Sevilhano (arquivo pessoal)

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Revista Viral -  Especial Quarentena

Revista Laboratorial do 4º ano de Jornalismo da Universidade Santa Cecília, na disciplina de Laboratório de Produções Jornalísticas (Revista). Esta edição conta com produção dos alunos das disciplinas de Radiojornalismo, Informática Aplicada, Oficina de Jornalismo e Representação Eletrônica (Produção Multimídia). 

Professores responsáveis: Helder Marques, Nara Assunção e Raquel Alves

Professora responsável pelos podcasts: Wanda Schumann

Diretor da Faac: Humberto Challoub

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