“Não sei dizer como andam as coisas no hospital, mas sinto que o pior está por vir”
- viralunisanta
- 24 de abr. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 30 de abr. de 2020
Marília vivia com a filha, de cinco anos, e a avó, de 75. Tinha acabado de conquistar o emprego dos sonhos, num hospital particular de Santos, e acertava os detalhes para a festa de noivado quando a pandemia deu as caras na Baixada. Os planos caíram por terra e hoje ela vive isolada em uma quitinete com sintomas da infecção.

Nosso noivado estava marcado para 22 de março. Havíamos alugado salão, encomendado bolo e salgados. Eu e meu noivo passamos noites cortando corações prateados para a decoração, enquanto Manuella, minha filha, se divertia pegando um bocado deles e formando figuras no chão da sala. Estávamos unidos em uma missão, seguir com nosso romance, noivar e comprar um apartamento. Manuella adora o Marcio, meu noivo, a quem chama de pai, mesmo sabendo que seu pai biológico a abandonou. Minha vida sentimental sempre esteve de ponta- cabeça, e o Marcio chegou colocando tudo no lugar. Assim como eu, minha família estava inteiramente dedicada ao nosso noivado, ajudando com o que podia. Um mês e poucos dias antes da festa, a ficha caiu. De uma vez. É claro que sabíamos que o coronavírus estava à solta, assustando o mundo. Vimos o que aconteceu na China, a Europa já apresentava mortes e até em São Paulo se ouvia falar em casos suspeitos. Mas tudo parecia distante. Sou enfermeira em um hospital privado de Santos. Estava no plantão noturno em uma segunda-feira de março, quando chegaram dois pacientes idosos com problemas respiratórios e cardíacos. Eles apresentavam tosse seca e falta de ar. O clima pesado pairou sobre os funcionários da UTI; a realidade distante da Europa havia chegado e nem estávamos preparados para receber este vírus no hospital. Agora era hora de redobrar os cuidados com a assepsia, diante do medo de pegar a doença, e pior, colocar toda a família em risco. Quando o país entrou oficialmente em quarentena, ficou claro que não poderíamos seguir com a festa de noivado, o que era uma decepção, pensando pelo lado emocional, e um problema, já que uma parte do nosso investimento jamais retornaria. Mas era somente o início do nosso pesadelo. Como profissional de saúde, represento um grande risco para minha família, afinal moro com minha avó, de 75 anos e com Manuella. Sempre tive uma rotina de cuidados, mas, diante de um quadro de pandemia, era preciso pensar em soluções mais drásticas. Me lembro de chorar por horas no banco do carro do meu noivo, porque a vida, que seguia um ritmo tão ajustado, acabava de dar mais um looping, virava novamente de ponta cabeça. A solução surgiu de maneira repentina: alugamos uma quitinete para que eu pudesse ficar isolada. Tem TV, cama, sofá, geladeira, fogão, tudo. Fica perto do apartamento onde eu morava havia poucas semanas, então não foi difícil me adaptar à vizinhança. Difícil tem sido me adaptar à distância, principalmente da minha Manu. Saí da casa da minha avó, deixando para trás uma pessoa com 75 anos e bronquite. Manuella está em um sítio no interior de Minas Gerais com meus sogros, onde ainda não há relatos do Covid-19 na região. Sinto tanta falta delas. Após a mudança para a quitinete, eu passei a me locomover apenas com a ajuda do meu noivo. Não peguei mais transporte público. As pessoas já demonstravam sentir medo de quem vestia branco.
Então todo dia o Marcio me levava e buscava do trabalho. Nosso único contato era no carro, ele na frente e eu atrás. Sem contato físico algum, mas o suficiente para demostrar suporte um ao outro.
Hoje só tenho contato com a Manu e minha avó por telefone, vez ou outra fazemos chamadas de vídeo quando a saudade aperta mais. Vamos seguindo dia após dia, fazendo de tudo para nos mantermos em segurança e podermos nos reencontrar assim que possível.
Mesmo sem festa, hoje em dia me considero noiva. Quero dizer, houve uma pequena festa que transbordou meu coração de alegria. Estávamos eu e Márcio no carro, a caminho da quitinete que seria meu novo lar, quando ele me levou até a casa dos pais dele de repente. Quando entrei, tive uma surpresa. Na pequena sala do apartamento estava uma mesa com dois bolos pequenos, uma placa em formato de coração com as escritas MARILIA E MARCIO, além de dois pequenos balões vermelhos, também em formato de coração. A decoração era simples, mas linda, feita com amor. Minha filha Manuella estava com a roupa que comprei para o noivado, um lindo vestido branco com rosas vermelhas. Eu e Marcio trocamos as alianças, demos boas risadas, e ali nos tornamos noivos. Não foi o que planejamos, mas foi suficiente.
Naquele dia me preparei para o adeus, sabia que não veria ninguém por um bom tempo. Tentei explicar a situação para Manuella, me preocupando em falar da maneira correta. Ela não entendeu inteiramente o que estava acontecendo, mas aceitou. Como se esse susto não fosse suficiente, duas semanas depois dos primeiros dois casos de coronavírus no hospital, passei a apresentar sintomas respiratórios. Fiquei febril, passei mal e as tosses vieram. Consultei o médico do próprio hospital, e ele decidiu me afastar por 16 dias. Eu não tinha exames e estava sem minha família. Não sei dizer como andam as coisas no hospital, mas sinto que o pior ainda está por vir. A pandemia está apenas no início, e sinto medo, principalmente pela minha avó. Estou preparada para o pior. Não crio expectativas de quando a pandemia irá acabar, mas todos os dias eu sonho comigo encontrando minha família novamente, e podendo finalmente me casar.

por Amanda Oliver || Natália Nini || Rafael Meireles || Pedro Donabela
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