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  • Foto do escritorCésar Feitiço

Cantando nas passarelas da vida

Como o amor pela cultura do samba e a vontade de vencer transformaram a vida de um ex-morador da comunidade de Mangue Seco


Acordar cedo, café da manhã, dar partida e trabalhar. Para muitos, a rotina de Thiago dos Santos parece comum, igual a de tantos que trabalham como motociclista de entrega, sempre correndo de um lado a outro. O ritmo frenético do vaivém é o mesmo que serve de base à sua voz nos ensaios e desfiles da Escola de Samba Unidos dos Morros.


Thiaguinho é intérprete dos bons. Entre os graves e agudos de sua força vocal, vem uma outra força: a de seguir em frente e de acreditar em uma vida melhor, pois ao longo dos diferentes trajetos que percorre diariamente, nenhum é tão cheio de curvas, descidas e subidas, quanto sua história.


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Thiaguinho, ao centro, comandando a Ala Musical da Unidos dos Morros na quadra da escola

Como um flash de luz, Thiago faz o tempo retroceder rápido para relembrar a infância, quando tinha três anos de idade. A realidade era dura, agravada por uma estrutura familiar disfuncional. Seu lar, na verdade, não era seu. Era um barraco de madeira no Jóquei Clube, em São Vicente, cedido temporariamente por um vizinho. Porém, seu padrasto não estava lá. Motivo? Preso. E seu pai biológico? Também preso.


Na batalha por algo melhor e para fugir da condição insustentável causada pelas desavenças com a sogra da mãe, Thiago e a mãe foram obrigados a buscar uma outra morada. Acabaram na comunidade do Mangue Seco, no Jardim Rádio Clube, em Santos. Uma região pobre, repleta de palafitas, onde até as mais básicas das necessidades e serviços obrigam o cidadão a um esforço inimaginável. Lixo jogado nas ruas, resquícios de ‘bailões’ são parte do cenário da maior área de casas sobre palafitas do Brasil.


“O que muita gente hoje tem como básico, para mim, meus irmãos e minha mãe, faltava direto. A gente vivia de favor atrás de favor e muitas vezes minha mãe teve que se submeter ao crime só para conseguirmos alguma coisa. O crime matou o meu padrasto e quase a matou”, relembra o hoje intérprete, com um olhar de quem viu sua infância por um barraco de madeira.


Durante a sua viagem pela estrada da nostalgia, Thiago também reflete sobre o sentimento de saudade. “Acho engraçado que a maioria das pessoas que conheço falam ‘nossa que saudade da infância’. Eu não tenho isso. Nem por um segundo sinto falta da minha infância. Agradeço todo dia a Deus por ter sobrevivido e pra nunca mais ter que passar por isso tudo de novo”, afirma, enquanto recorda da morte de seu irmão Leandro e de sua mãe, falecida em 2016.


De Entrelaçados a Unidos: Thiago e o Carnaval


A conversa de lanche da tarde, com pão, mussarela, presunto, um café recém-preparado adoçado e acompanhado de outros alimentos clássicos de uma refeição brasileira, nos leva a uma época em que o trabalho de Thiago era rodeado, ou melhor, enfileirado por alimentos: o supermercado da Rede Krill do Rádio Clube, com seus extensos corredores brancos seguidos por linhas vermelhas e azuis, com cada alimento em seu devido lugar.

De forma poética, o futuro sambista de diversas escolas ali estava enfileirado para descobrir a sua verdadeira paixão. Em um encontro com o então intérprete da Unidos da Zona Noroeste, Rodrigo Pastilha, Thiago encontrou a luz do samba e do carnaval.

“Eu comecei a achar bonito o samba enredo porque ele conta a história de alguém, de algum lugar, ou de alguma coisa. Achei isso muito interessante e percebi que estava no meu sangue.”

Depois de passar por diversas bandas carnavalescas, Thiago seguiu na carreira de intérprete por várias escolas de samba, incluindo Acadêmicos de Praia Grande e Dragões do Castelo, mas a experiência que mais o marcou definitivamente ficou para a Ong e Academia de Samba Mãos Entrelaçadas.


Último desfile de Thiago pela Mãos Entrelaçadas, no Carnaval de 2023

Foram oito anos e seis carnavais dando voz a variados sambas-enredo, em que, na avenida Dráuzio da Cruz, na área de concentração da escola, empunhava o microfone e entoava seu grito de guerra, junto com todos os componentes ligados e unidos em promover cultura e oportunidade para os moradores do bairro.


Eram ensaios e oficinas na esquina da Avenida Dr. Frederico de Figueiredo Neiva, número 24, que entrelaçavam a comunidade nas já tradicionais noites de terças, quintas e domingos.


Mesmo com o polêmico encerramento da escola, o intérprete considera a experiência como transformadora. “O intuito da escola sempre foi dar bom testemunho e mesmo não estando preparado para o fechamento, carrego essa lição até hoje para qualquer lugar onde vou”.


Mesmo em contato direto com o “caminho errado”, Thiago superou as adversidades e obstáculos. Com o fechamento do projeto Mãos Entrelaçadas, no Carnaval de 2023, o intérprete acreditava que seu fim seria inevitável. Até porque essa batalha era somente dele.


E mesmo agora com sua esposa, Vanuza Marques, cuja união dura mais de 15 anos, o apoio no carnaval não é unanimidade em casa. Mas quando uma porta se fecha, outras se abrem. E foi exatamente isso que aconteceu com Thiago.


A qualidade da voz do intérprete foi conquistando sambistas de todas as vertentes, culminando num convite irrecusável: assumir a voz principal na atual bicampeã do carnaval santista: Unidos dos Morros.

E o que esperar do futuro? Para Thiago, essa carreira no carnaval não existe. O que existe, sim, é sua trajetória.

“Eu vou cantando, cantando, cantando e cantando. Onde eu chegar, cheguei! Se aparecerem outras boas oportunidades, ficarei feliz, mas, se não acontecer, não vou ficar desapontado.”

Muitos apontam seu futuro fora daqui. Em São Paulo, no Rio, em escolas de samba com mais peso, nome e estrutura. Mas o futuro com o qual ele sonha, passa bem longe disso. O futuro dele se chama Vanessa , sua filha, de 9 anos, que é um de seus maiores presentes.

Toda a dificuldade que passou na infância, serviu de combustível para proporcionar à pequena Vanessa todas as condições de crescer bem, num ambiente familiar saudável e cercada de bons exemplos.


Embora ainda alugada, a atual casa conta com a comodidade e espaço que Thiago não teve em suas moradias de infância. Vanessa vai poder correr pelos corredores que cruzam a área de serviço, passando pelo caminho ao lado até chegar a garagem, onde estão as “ferramentas” de trabalho de seu pai.


Se cansar, poderá ir ao seu quarto descansar, com ar-condicionado para ajudar a refrescar. “Eu trabalho muito para ter essa casa, para ter algo digno para a minha família. Nosso lar atende todas as nossas necessidades, assim não tenho nada do que reclamar”.


Essa perspectiva, de proporcionar algo melhor a sua família, é o combustível que abastece Thiago nessa trajetória, que não vê problema em levantar cedo, tomar seu café, ligar o motor, e partir para o trabalho, pois sabe que no fim desta estrada haverá um horizonte repleto de cenários e oportunidades.


 

Texto: João Olmos, César H. Corrêa e Pietro Falbuon

Edição: César H. Corrêa

Foto: Divulgação

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